Nestes tempos de horizontes mundiais incertos e realidades políticas
brutalizadas, é comum em palestras que profiro alguém perguntar sobre
como a filosofia poderia nos auxiliar para nos sentirmos melhores. Esta é
uma pergunta que parece aceitar de bom grado que o discurso filosófico
teria alguma forma de função terapêutica a ser ouvida, principalmente em
momentos de crise.
De fato, a pergunta não é estranha se lembrarmos da experiência social
da filosofia nos últimos anos entre nós. Durante certo tempo, as
livrarias brasileiras foram invadidas por títulos do calibre de "Mais
Platão, Menos Prozac" ou "Schopenhauer e a Arte de Viver Bem".
Como se o lugar do discurso filosófico fosse em algum ponto entre a
prateleira de autoajuda e seção de livros clássicos. Falava-se algo
sobre a "verdadeira felicidade", fazia-se uma crítica genérica ao curso
do mundo, ao mundo em que tudo é mercadoria, aos "falsos prazeres".
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Assim, encontrava-se um lugar para a filosofia na agenda das
preocupações do dia. Daí a pedir que a filosofia funcione como um grande
depositário de fórmulas de consolação foi um passo não muito longo.
Bem, se me permitirem, eu teria a tendência inversa. Gostaria de dizer
que, se o discurso filosófico tem alguma função em momentos como este, é
o de acelerar o desabamento, e não servir de síndico de prédios
abandonados e arruinados.
Se Hegel um dia afirmou que o caminho da formação da consciência era o
caminho do desespero, não foi um acaso. De certa forma, não é errado
dizer que a filosofia, em seus setores mais avançados, foi, desde seu
início, um regime de discurso constituído para permitir às sociedades
criticarem as estruturas normativas que procuravam se fazer passar por
representações naturais –estejam tais estruturas no campo das
expectativas cognitivas, morais, estéticas ou na reflexão sobre a
natureza da vida social, entre tantos outros.
Por isso, o maior antípoda do discurso filosófico sempre foi o senso
comum e seu sistemas de pressuposições que se colocam como evidências. O
senso comum quer que continuemos a pensar como pensamos, enquanto o
discurso filosófico lembra que não é mais possível pensar da maneira
como pensamos até agora. Quer dizer, a razão de ser do discurso
filosófico sempre foi orientar as possibilidades da crítica, sempre foi
apontar para o que é ainda uma latência da existência.
No entanto, é certo afirmar que a filosofia sempre foi o discurso daqueles que amam o que é ainda uma mera impossibilidade.
Para alguns, isso pode passar por exercício ocioso, mas outros
lembrariam que tudo o que realmente fomos capazes de produzir foi
impossível algum dia. Impossível é apenas o que não pode ser pensado na
situação atual, mas há sempre aqueles que lutam com todas as forças para
levar os sujeitos a acreditarem que, fora da situação atual, só haverá o
caos, o terror, a catástrofe. Há os que se especializaram em paralisar
pessoas através do medo. Que eles sejam bem pagos.
Nesse sentido, não é um acaso que o discurso filosófico se fortaleça
exatamente quando as sociedades nas quais ele aparece começam a entrar
em colapso. Ele é uma sismografia dos abalos que ocorrerão mais tarde.
Assim, a filosofia das luzes (Rousseau, Voltaire, Diderot) foi o
prenúncio do colapso do sistema absolutista, e não sua expressão.
O idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel) foi gestado em um
país retardatário e em luta contra seus arcaísmos. Nesses casos e em
tantos outros, o discurso filosófico não apareceu como reflexo de uma
época, mas como estratégia do espírito do tempo para levar uma época
determinada mais rapidamente ao seu ponto de desabamento.
Lembrar disso é uma maneira de responder àqueles que anseiam por
esquemas práticos o mais rápido possível. Como dizia à sua maneira
Heidegger, muitas vezes agimos para não pensar. Ou seja, fazemos de tudo
para novas questões não aparecerem, nem novas maneiras de responder a
velhas questões.
Assim, podemos continuar a agir produzindo os mesmos erros de sempre.
Uma ideia, ao contrário, é sua força de enunciação e a internalização do
movimento de seus erros. Não houve ideia verdadeira alguma que não
tenha começado errando.
Obs.: O texto acima reproduzido foi publicado originalmente no site, que detém todos os créditos: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/09/1813733-atribuicao-da-filosofia-em-momentos-como-este-e-acelerar-o-desabamento.shtml
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