Vladimir Safatle
Depois de um anúncio catastrófico do projeto de reforma educacional do
ensino médio proposto por aquilo que alguns chamam de "governo", esta
semana viu uma sucessão de esforços para tentar vender à população a
tese de que enfim chegaram as ações esperadas.
Órgãos de propaganda do dito "governo" travestidos de revistas semanais
apresentaram o projeto como um conjunto de medidas corajosas que
visariam revolucionar o engessado ensino brasileiro. O senhor que ocupa o
cargo de ministro da Educação apareceu enfim para tentar defender o
projeto feito por sua equipe, isto enquanto o próprio Michel Miguel
ligava não para especialistas em educação, mas para Fausto Silva, vulgo
Faustão, para convencê-lo da grandeza do projeto criticado pelo
referido.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
Que uma das primeiras medidas do "governo" fosse intervir na educação
nacional, eis algo que não deveria surpreender ninguém. O projeto
apresentado nem de longe expressa alguma preocupação real com o aumento
da qualidade de nossas escolas e com o desenvolvimento integral de
nossos alunos. Seus eixos centrais são a segregação, a precarização da
atividade docente e o puro e simples obscurantismo.
Não é de admirar que a verdadeira equipe que produziu este projeto seja
composta por "especialistas" que trabalham há décadas nos governos FHC,
em Brasília, sob a batuta do ilibado José Arruda e nos governos tucanos
de São Paulo, com resultados pífios e medíocres. De fato, não poderia
ser diferente, já que a regra dessas senhoras e senhores é impor uma
visão tecnocrata que despreza a inteligência prática de professores
envolvidos nos processos de ensino, sendo os únicos realmente capazes de
indicar o que funcionaria e o que não funcionaria.
Contrariamente ao que se tentou vender, este país fez mudanças drásticas
e constantes no ensino nas últimas décadas. Todas pecaram por desprezar
os saberes daqueles que estão diretamente envolvidos nos processos,
dando voz a burocratas e tecnocratas que nunca pisaram em uma sala de
aula ou que não fazem isto há anos. A falência do ensino brasileiro não é
de seus professores, mas de seus tecnocratas de gabinete.
Veja três características mestras da dita reforma. Primeiro, ela cria
diferentes possibilidades de escolhas para os estudantes depois de um
período comum de um ano e meio. Eles poderão ter concentração de
disciplinas em linguagens, matemática, ciências da natureza, humanas e
ensino técnico. Até aÍ, nenhuma polêmica. Há anos todos os realmente
envolvidos com educação insistem que os alunos devem poder escolher
disciplinas mais próxima de seus interesses. Mas, como o diabo mora nos
detalhes, a questão é: as redes e escolas podem não oferecer aos alunos
todas as opções de concentração. Ou seja, você dorme com a promessa de
uma escola mais diversa e acorda com a realidade de uma escola onde, por
exemplo, a concentração de humanas não existe, onde o eixo de todos os
esforços é o ensino técnico. O resultado será abrir as portas para uma
segregação que consistirá em levar as escolas em regiões mais carentes a
cada vez mais oferecer ensino técnico, cuja empregabilidade é mais
rápida, porém muito mais precária.
Por outro lado, qualquer programa minimamente sério começaria por
qualificar melhor o corpo docente. Mas isso passaria por acabar, de uma
vez por todas, com a precarização e os salários vergonhosos dos
professores, uma das maiores razões para que nossos melhores alunos não
queiram mais ser professores. O que há a esse respeito na dita reforma?
Nada. No entanto, o projeto prevê que poderão ser contratados
professores sem licenciatura, portadores de "reconhecido saber".
Dificilmente haveria proposta mais absurda e irresponsável. Como dizia
Hegel, não é porque todos têm mãos que todos podem produzir sapatos. Mas
um governo que apresenta uma proposta como essa despreza os
conhecimentos técnicos necessários para a docência.
Por fim, havia a proposta medíocre de transformar artes, educação
física, filosofia e sociologia em matérias não obrigatórias. Agora, a
BNCC decidirá o destino, mas a pedra já está cantada. De fato, para os
tecnocratas a sociedade não deve precisar de cidadãos que conheçam
conceitos como conflito social, desencantamento do mundo, anomia social,
modernização reflexiva, ética, moral, classe, consciência, razão,
estética, lógica, pensamento crítico. É verdade, para votar em Michel
Miguel e sua turma, é melhor não saber nada disso.
Texto reproduzido originalmente publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/09/1818065-a-falencia-do-ensino-brasileiro-nao-e-de-seus-professores.shtml
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