Nestes tempos de horizontes mundiais incertos e realidades políticas
brutalizadas, é comum em palestras que profiro alguém perguntar sobre
como a filosofia poderia nos auxiliar para nos sentirmos melhores. Esta é
uma pergunta que parece aceitar de bom grado que o discurso filosófico
teria alguma forma de função terapêutica a ser ouvida, principalmente em
momentos de crise.
De fato, a pergunta não é estranha se lembrarmos da experiência social
da filosofia nos últimos anos entre nós. Durante certo tempo, as
livrarias brasileiras foram invadidas por títulos do calibre de "Mais
Platão, Menos Prozac" ou "Schopenhauer e a Arte de Viver Bem".
Como se o lugar do discurso filosófico fosse em algum ponto entre a
prateleira de autoajuda e seção de livros clássicos. Falava-se algo
sobre a "verdadeira felicidade", fazia-se uma crítica genérica ao curso
do mundo, ao mundo em que tudo é mercadoria, aos "falsos prazeres".
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress
Assim, encontrava-se um lugar para a filosofia na agenda das
preocupações do dia. Daí a pedir que a filosofia funcione como um grande
depositário de fórmulas de consolação foi um passo não muito longo.
Bem, se me permitirem, eu teria a tendência inversa. Gostaria de dizer
que, se o discurso filosófico tem alguma função em momentos como este, é
o de acelerar o desabamento, e não servir de síndico de prédios
abandonados e arruinados.
Se Hegel um dia afirmou que o caminho da formação da consciência era o
caminho do desespero, não foi um acaso. De certa forma, não é errado
dizer que a filosofia, em seus setores mais avançados, foi, desde seu
início, um regime de discurso constituído para permitir às sociedades
criticarem as estruturas normativas que procuravam se fazer passar por
representações naturais –estejam tais estruturas no campo das
expectativas cognitivas, morais, estéticas ou na reflexão sobre a
natureza da vida social, entre tantos outros.
Por isso, o maior antípoda do discurso filosófico sempre foi o senso
comum e seu sistemas de pressuposições que se colocam como evidências. O
senso comum quer que continuemos a pensar como pensamos, enquanto o
discurso filosófico lembra que não é mais possível pensar da maneira
como pensamos até agora. Quer dizer, a razão de ser do discurso
filosófico sempre foi orientar as possibilidades da crítica, sempre foi
apontar para o que é ainda uma latência da existência.
No entanto, é certo afirmar que a filosofia sempre foi o discurso daqueles que amam o que é ainda uma mera impossibilidade.
Para alguns, isso pode passar por exercício ocioso, mas outros
lembrariam que tudo o que realmente fomos capazes de produzir foi
impossível algum dia. Impossível é apenas o que não pode ser pensado na
situação atual, mas há sempre aqueles que lutam com todas as forças para
levar os sujeitos a acreditarem que, fora da situação atual, só haverá o
caos, o terror, a catástrofe. Há os que se especializaram em paralisar
pessoas através do medo. Que eles sejam bem pagos.
Nesse sentido, não é um acaso que o discurso filosófico se fortaleça
exatamente quando as sociedades nas quais ele aparece começam a entrar
em colapso. Ele é uma sismografia dos abalos que ocorrerão mais tarde.
Assim, a filosofia das luzes (Rousseau, Voltaire, Diderot) foi o
prenúncio do colapso do sistema absolutista, e não sua expressão.
O idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel) foi gestado em um
país retardatário e em luta contra seus arcaísmos. Nesses casos e em
tantos outros, o discurso filosófico não apareceu como reflexo de uma
época, mas como estratégia do espírito do tempo para levar uma época
determinada mais rapidamente ao seu ponto de desabamento.
Lembrar disso é uma maneira de responder àqueles que anseiam por
esquemas práticos o mais rápido possível. Como dizia à sua maneira
Heidegger, muitas vezes agimos para não pensar. Ou seja, fazemos de tudo
para novas questões não aparecerem, nem novas maneiras de responder a
velhas questões.
Assim, podemos continuar a agir produzindo os mesmos erros de sempre.
Uma ideia, ao contrário, é sua força de enunciação e a internalização do
movimento de seus erros. Não houve ideia verdadeira alguma que não
tenha começado errando.
Obs.: O texto acima reproduzido foi publicado originalmente no site, que detém todos os créditos: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/09/1813733-atribuicao-da-filosofia-em-momentos-como-este-e-acelerar-o-desabamento.shtml
Depois de um anúncio catastrófico do projeto de reforma educacional do
ensino médio proposto por aquilo que alguns chamam de "governo", esta
semana viu uma sucessão de esforços para tentar vender à população a
tese de que enfim chegaram as ações esperadas.
Órgãos de propaganda do dito "governo" travestidos de revistas semanais
apresentaram o projeto como um conjunto de medidas corajosas que
visariam revolucionar o engessado ensino brasileiro. O senhor que ocupa o
cargo de ministro da Educação apareceu enfim para tentar defender o
projeto feito por sua equipe, isto enquanto o próprio Michel Miguel
ligava não para especialistas em educação, mas para Fausto Silva, vulgo
Faustão, para convencê-lo da grandeza do projeto criticado pelo
referido.
Editoria de Arte/Folhapress
Que uma das primeiras medidas do "governo" fosse intervir na educação
nacional, eis algo que não deveria surpreender ninguém. O projeto
apresentado nem de longe expressa alguma preocupação real com o aumento
da qualidade de nossas escolas e com o desenvolvimento integral de
nossos alunos. Seus eixos centrais são a segregação, a precarização da
atividade docente e o puro e simples obscurantismo.
Não é de admirar que a verdadeira equipe que produziu este projeto seja
composta por "especialistas" que trabalham há décadas nos governos FHC,
em Brasília, sob a batuta do ilibado José Arruda e nos governos tucanos
de São Paulo, com resultados pífios e medíocres. De fato, não poderia
ser diferente, já que a regra dessas senhoras e senhores é impor uma
visão tecnocrata que despreza a inteligência prática de professores
envolvidos nos processos de ensino, sendo os únicos realmente capazes de
indicar o que funcionaria e o que não funcionaria.
Contrariamente ao que se tentou vender, este país fez mudanças drásticas
e constantes no ensino nas últimas décadas. Todas pecaram por desprezar
os saberes daqueles que estão diretamente envolvidos nos processos,
dando voz a burocratas e tecnocratas que nunca pisaram em uma sala de
aula ou que não fazem isto há anos. A falência do ensino brasileiro não é
de seus professores, mas de seus tecnocratas de gabinete.
Veja três características mestras da dita reforma. Primeiro, ela cria
diferentes possibilidades de escolhas para os estudantes depois de um
período comum de um ano e meio. Eles poderão ter concentração de
disciplinas em linguagens, matemática, ciências da natureza, humanas e
ensino técnico. Até aÍ, nenhuma polêmica. Há anos todos os realmente
envolvidos com educação insistem que os alunos devem poder escolher
disciplinas mais próxima de seus interesses. Mas, como o diabo mora nos
detalhes, a questão é: as redes e escolas podem não oferecer aos alunos
todas as opções de concentração. Ou seja, você dorme com a promessa de
uma escola mais diversa e acorda com a realidade de uma escola onde, por
exemplo, a concentração de humanas não existe, onde o eixo de todos os
esforços é o ensino técnico. O resultado será abrir as portas para uma
segregação que consistirá em levar as escolas em regiões mais carentes a
cada vez mais oferecer ensino técnico, cuja empregabilidade é mais
rápida, porém muito mais precária.
Por outro lado, qualquer programa minimamente sério começaria por
qualificar melhor o corpo docente. Mas isso passaria por acabar, de uma
vez por todas, com a precarização e os salários vergonhosos dos
professores, uma das maiores razões para que nossos melhores alunos não
queiram mais ser professores. O que há a esse respeito na dita reforma?
Nada. No entanto, o projeto prevê que poderão ser contratados
professores sem licenciatura, portadores de "reconhecido saber".
Dificilmente haveria proposta mais absurda e irresponsável. Como dizia
Hegel, não é porque todos têm mãos que todos podem produzir sapatos. Mas
um governo que apresenta uma proposta como essa despreza os
conhecimentos técnicos necessários para a docência.
Por fim, havia a proposta medíocre de transformar artes, educação
física, filosofia e sociologia em matérias não obrigatórias. Agora, a
BNCC decidirá o destino, mas a pedra já está cantada. De fato, para os
tecnocratas a sociedade não deve precisar de cidadãos que conheçam
conceitos como conflito social, desencantamento do mundo, anomia social,
modernização reflexiva, ética, moral, classe, consciência, razão,
estética, lógica, pensamento crítico. É verdade, para votar em Michel
Miguel e sua turma, é melhor não saber nada disso.
O relacionamento de Michel e Marcela Temer faz com que pese sobre ele
mais uma dentre tantas acusações: o interino encara mulheres como
troféus, nada além disso.
Afirmo isso porque um homem de mais de 60 anos que se casa com uma
quase adolescente não está movido tão somente pelo amor – nestes tempos,
até mesmo o amor precisa ser politizado. O que o move é a ânsia de
afirmar-se como macho provedor, capaz de carregar uma mulher dita
perfeita a tiracolo, como um belo acessório.
Imagine uma mulher de 19 anos que conhece um homem de 62. Imagine que
esta mulher vê neste homem a sua grande chance de felicidade: uma vida
maravilhosa, rodeada de empregados, roupas de grife. Só que essa mulher
mulher acaba privada de outras escolhas que pudesse fazer na vida.
Não foi Michel Temer que privou Marcela, a jovem sonhadora de
Paulínea, de outras escolhas: foi a sociedade patriarcal, que lhe disse,
desde muito cedo, que seu sonho mais ambicioso deveria ser casar-se com
um homem “bem-sucedido” (entre muitas aspas).
É uma ambição mesquinha, eu diria, mas a cada um cabem as próprias escolhas.
Os homens – os de direita e os de esquerda – podem até acreditar que
Marcela não foi vítima de qualquer abuso. A própria Marcela deve
acreditar piamente nisso, mas a verdade é que uma mulher que se casa com
alguém 43 anos mais velho – e, neste ponto, peço licença para julgar o
“amor” alheio – só pode estar movida pelo desejo de ser aceita da única
maneira que uma mulher é aceita nesta sociedade: à sombra de um homem
“poderoso”.
O que não devemos esquecer é que, com 19 anos, uma mulher não conhece
ainda nada da vida, principalmente se viveu em uma cidade interiorana
desde que nasceu. Suas escolhas estão pautadas no pouco que conhecem, no
que os outros esperam delas, no que elas acreditam ser o sucesso – para
Marcela, Michel é o sucesso.
Paciência.
O fato é que um homem que exibe orgulhosamente uma esposa quarenta e
seis anos mais jovem – imaginem, de relance, se Dilma fosse casada com
um homem 43 anos mais jovem! – não encara o casamento como uma união,
mas como um negócio, um jogo de ego e autoafirmação.
Para um homem que mantém sua bela esposa numa coleira invisível, não
existe companheirismo e não existe horizontalidade: existe apenas o
casamento subserviente, tal qual no século XX, e eu não confiaria em um
homem que mantém esse tipo de relacionamento nem para segurar a porta do
elevador, quanto mais para governar o meu país.
Barack Obama, por exemplo, tem uma esposa com idade próxima à sua,
que mantém, livremente, a própria identidade e toca, sozinha, os
próprios projetos sociais – inclusive de cunho feminista – enquanto
Marcela Temer é apenas a bela de estimação de seu marido.
Esta é a nítida diferença entre ambas: Michelle existe, enquanto
Marcela é apenas objeto decorativo utilizado ardilosamente para limpar a
imagem – como se fosse possível – de seu homem.
Nosso país é governado por um homem que não acredita na necessidade
de mulheres em seu Ministério e encara o casamento como um mero
garantidor do status de macho-alfa.
Michel Temer é o nítido retrato do retrocesso em todos os aspectos.
Sobre o Autor: Colunista, autora do livro "As Mulheres que Possuo", feminista, poetisa,
aspirante a advogada e editora do portal Ingênua. Canta blues nas horas vagas.
Veja o texto publicado originalmente no site: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-que-o-casamento-com-marcela-diz-sobre-michel-temer-por-nathali-macedo/
Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, não consegue chegar em casa. Desde que ele e sua família foram expulsos de sua ilha pela hidrelétrica de Belo Monte,
Otávio já está na terceira casa. Mas não consegue chegar. Porque para
ele aquela terceira ainda não é uma casa. Como não era a primeira nem
era a segunda. Sem casa, Otávio não tem mundo. Sem mundo, um homem não
tem onde pisar. Os conhecidos avisam: você já viu, seu Otávio está
encolhendo. E ele está, porque é isso o que acontece com os homens sem
mundo.
O que é uma casa é a pergunta que atravessa a construção da hidrelétrica de Belo Monte,
no Xingu, no Estado do Pará. A pergunta que não foi feita no cadastro
nem em momento algum. É a pergunta que diz quem aquela pessoa é. E onde
ela precisa viver para ser o que é. Quando é o empreendedor, o novo nome
do colonizador na Amazônia, que determina o que é uma casa, com base no
seu mundo e nas suas referências, em geral forjadas na realidade bem
diversa do centro-sul do Brasil, a violência se instala. E vidas são
aniquiladas.
Acompanho Otávio das Chagas desde 2014. Naquele momento, ele, sua
mulher Maria e os nove filhos estavam na primeira casa que não podia ser
casa. Uma casa de madeira alugada numa periferia violenta de Altamira.
Em 2015, mudaram-se para uma “unidade” de Reassentamento Urbano Coletivo
(RUC), nome dos conjuntos habitacionais padronizados que a Norte
Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção compulsória”. Em
2016, dividiram-se: os dois filhos mais velhos permaneceram na casa
padronizada, um deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os
filhos mais jovens transferiram-se para uma casa doada por um grupo de
austríacos que se comoveu com as tribulações do pescador sem rio e sem
letras.
Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam fome – mas a fome não se deixa escrever.Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam
fome. Tinham teto, mas passavam fome. Era oficialmente uma casa, mas
passavam fome. Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na semana
passada, havia também uma cebola pequena. Fome é algo que fracasso em
descrever. A fome não se escreve. Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a
escritora brasileira que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”.
Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que sente quando chega
a passar até dois dias sem comer: “Dá uma dor no estômago, uma
tontice”. É uma pista, mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o
que fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”, ela continua. É
outra pista, mas ainda não é a fome por escrito. Jamais será. A fome é
algo tão avassalador que irredutível às palavras. Encaro os olhos fundos
de Adriano, o menino de sete anos, e entendo sem letras. Entendo, mas
sigo sem alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me falta a
experiência. Adriano é mais uma doce criança com olhos de velho deste
mundo. Quando o encontrei na segunda casa, a do RUC, em 2015, era o dia
do seu aniversário. E não havia sequer um pedaço de pão para Adriano
comer.
Casa é onde não tem fome, eles me ensinam. Se tem fome, é só teto.
Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de 30 anos na Ilha de
Maria, uma das centenas de ilhas do Xingu. Viver talvez não seja a
palavra exata. Eles pertenciam à ilha de Maria. É inversa essa questão
da posse. E não apenas por questões da lei. Mas porque é a ilha que se
apossa das pessoas, que lhes conforma o corpo e a existência, que lhes
desenha a arquitetura do tempo. Na ilha, Otávio, Maria e seus filhos
sabiam. Quando expulsos para a “rua”, nome que os ribeirinhos
agroextrativistas de várias regiões amazônicas dão à “cidade”, são
esvaziados de saber. Assim, essas casas, na “rua”, serão de certo modo
sempre “rua” – e não casa.
Otávio das Chagas explica: “Pra roçar uma juquira, pra trabalhar de
roça, pra toda coisa de mato, eu sou profissional. Peixe, eu sou
profissional também. Mas pras coisas da rua, a gente não sabe. Meus
menino ainda sabe ler, mas é só uma coisinha. Não tem vida pra nós
aqui”. Maria completa: “Aqui na rua é tudo no dinheiro. Se não tem
dinheiro, não come. Até a água é paga, todo mês 120 real”.
Para quem teve sua ilha afogada, viu sua memória
virar água, restou apenas o território do próprio corpo, onde perseguem
cicatrizes para provar que existem
Quando são expulsos da ilha a qual pertencem, Otávio, Maria e seus
filhos já não reconhecem nem se reconhecem, porque a ilha era também
espelho. Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de uma
guerra, de um terremoto ou da fome, haverá sempre a terra que ficou,
haverá ruínas, haverá os mortos ali enterrados para dar conta do que
foram, mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus filhos
perderam a materialidade do que viveram, a memória física do que eram,
do que são. Tudo o que dizia deles virou água pela força de Belo Monte.
Da ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles apontar as
cicatrizes que documentam uma vida no único território que lhes restou: o
do próprio corpo.
Desde então, eles pisam “na rua”, mas não encontram o chão. Essa
experiência desestruturante é de difícil compreensão para aqueles que
sempre têm para onde voltar. É penosa de entender mesmo quando se quer
entender. Mas quando os colonizadores sequer percebem que é necessário
compreender, caso dos protagonistas da hidrelétrica, seja como governo,
seja como empresa, resta só a violência. E ela vai matando aos poucos.
Quando foi expulso, em 2012, Otávio assinou com o dedo papéis que não
era capaz de ler. Seus filhos assinaram por ele papéis que não eram
capazes de ler. Receberam 12.994,02 reais como indenização. Sua casa não
foi considerada uma casa. Não cabia no conceito de casa do
empreendedor. Quando a “remoção” dos habitantes das ilhas, das beiras e
dos baixões, assim como das terras rurais, foi determinada, não havia
defensoria pública na região. O Governo de Dilma Rousseff abandonou a
população do Xingu sem qualquer proteção jurídica na maior obra do setor
elétrico do país, à mercê dos advogados da Norte Energia, uma violação
de direitos que manchará para sempre a biografia da presidente hoje
afastada. Otávio e sua família foram jogados num dos bairros mais
violentos da periferia de Altamira, onde pagavam um aluguel que, junto
com a doença de uma das filhas, comeu o dinheiro em meses. A casa
alugada foi a primeira não-casa.
A primeira não-casa: a família de Otávio das Chagas na casa alugada na periferia de Altamira, em novembro de 2014. Lilo Clareto/Acervo Pessoal
Otávio das Chagas não entende uma casa que ele mesmo não bota em pé:
“Eu não sei trabalhar de pedreiro. Mas eu sei fazer uma casa nossa. A
senhora sabe o que é uma casa coberta de cavaco? Aquelas eu sei fazer”. E
descreve em detalhes como se constrói “uma casa boa e bem-feita”, como a
que tinha na ilha e que não foi reconhecida como casa pelo
empreendedor. Esta casa, que a cada cheia do rio ele precisava
reconstruir, assim foi descrita em despacho da Norte Energia: “estrutura
rudimentar de madeira com cobertura de palha”. Para compreender o que é
uma casa, em toda a sua inteireza, é necessário escutar os ribeirinhos
com mais atenção: a casa não é uma “estrutura”, apenas, mas algo mais
extenso no qual é abarcado todo o seu entorno, as árvores, a roça, a
mata, o rio. A casa é fora e dentro – é um amplo e um tudo.
Casa é fora e dentro, é um amplo e um tudo, é onde se faz laços que garantam a sobrevivência e também a alegria.Maria explica: “Lá na ilha a gente tinha tudo, a gente tinha
fruteira, a gente tinha peixe, a gente tinha caça, a gente tinha roça, a
gente tinha remédio do mato, a gente tinha água, a gente tinha vizinho,
a gente tinha sombra, a gente brincava, no sábado vinha gente de todo
lado, os homem jogava futebol, as mulher tratava o peixe, assava e
brincava. Lá na ilha a gente tinha fartura. Aqui, nós compra banana e
qualquer pouquinho é um preço doido. Lá nós tinha tanta banana que
jogava pros bicho”. A casa não é apenas uma “estrutura rudimentar de
madeira com cobertura de palha”, como descrita pelo etnocentrismo do
empreendedor. O conceito de casa é estendido. Casa é onde não se passa
fome, é onde se faz laços que garantam a sobrevivência e também a
alegria.
Com a chegada bem tardia da Defensoria Pública da União à cidade de
Altamira, no início de 2015, Otávio das Chagas recebeu uma das casas
padronizadas, construídas pelo empreendedor sem qualquer respeito ao
conceito de casa daquela população. As unidades padronizadas poderiam
estar em qualquer lugar, na Amazônia ou na serra gaúcha. São genéricas.
As vítimas de “remoção compulsória” foram lá jogadas sem nenhuma
preocupação em manter as relações de vizinhança e os laços comunitários,
essenciais para a sobrevivência e para a preservação de uma memória
comum. Esse cuidado que não houve poderia ter desempenhado um papel
essencial ao reconhecimento mútuo num momento tão desestabilizador para
as famílias atingidas.
Nesta casa genérica, onde a família não cabia inteira, apenas se
amontoava, nesta casa “abafada”, Otávio das Chagas me pediu um dia para
desenhar um mapa do Brasil, para mostrar de onde eu vinha. Onde era a
minha ilha, meu pertencimento. Desenhei um mapa mal desenhado. E percebi
que ele continuava perdido. Mesmo que eu desenhasse mil mapas
perfeitos, ele seguiria perdido, porque sua ilha já não estava nele. Sua
ilha afogada já não existia no Brasil.
A segunda não-casa:
Otávio das Chagas e a mulher Maria numa unidade de Reassentamento Urbano
Coletivo (RUC), na periferia de Altamira, em setembro de 2015, com as
plantas que restaram Lilo Clareto/Acervo Pessoal
Naquele momento, as crianças menores não frequentavam a escola,
porque tinham medo de ônibus. Elas só conheciam canoa. Quando viviam na
ilha, um barco passava para entregá-las à professora. Enquanto sofriam
de fome naquela casa genérica, um carro de som passava anunciando aos
berros que Belo Monte “é energia limpa e sustentável”. Há uma perversão
no uso das palavras. Para muitos, as hidrelétricas na Amazônia ainda são
“energia limpa e sustentável”. Para estes, as vidas que o processo
engole não contam. Nunca contaram. É sempre fácil pedir o sacrifício dos
outros.
Assaltados na terceira casa, Otávio das Chagas e sua família vivem agora trancados e com medo
Na terceira casa, Otávio das Chagas, Maria e seus filhos quase
perderam a vida. Os sentidos do viver, o reconhecimento de um saber
sobre a floresta, a valorização de um conhecimento do rio, a
possibilidade de sobreviver pelas próprias mãos já tinham sido
destruídos pela violência do processo de Belo Monte. Mas, em 2 de julho,
eles se sentavam à porta da casa, um hábito da ilha que ainda
mantinham, quando homens armados a invadiram.
Otávio conta: “Era seis hora da tarde. Porque nós moremo toda vida
assim no mato e é a morada que eu me acostumo. Eu não me acostumo com a
morada num lugar desse. Aí, quando é seis hora da tarde nós senta ali na
frente da casa na morada no mato. Não tem perigo nenhum. Mas aqui, num
lugar desse...”. Botaram um revólver na cabeça de Edilardo, o filho de
24 anos. Marisa, de 10, correu e foi pega por outro. O assaltante
colocou um facão nas costas da menina. Naquele dia, Marisa estava
doente, com febre. E de repente tinha também um facão ameaçando
cortá-la.
A terceira não-casa:
Otávio das Chagas, Maria e os filhos menores na casa doada por uma
família austríaca que se comoveu com a história do pescador sem rio e
sem letras, em julho de 2016 Lilo Clareto/Acervo Pessoal
Havia pouco para roubar na casa quase nua. Levaram celulares muito
simples e um “devedezinho” que Otávio tinha comprado a prestações no
Armazém Paraíba, no período em que os filhos mais velhos tiveram um
emprego temporário. Era a única diversão das crianças na cidade, que
nele assistiam a filmes piratas. Marisa tinha um da Barbie, Adriano, das Tartarugas Ninjas e do Menino Lobo. Levaram também o pagamento do mês de trabalho de Maria como doméstica na casa de outra mulher.
Maria lava e limpa dia após dia para ganhar 400 reais no final do
mês. É a primeira vez em 62 anos de vida que ela trabalha na casa de uma
outra. Não é simples para Maria, uma mulher do rio, que costumava
passar os dias cuidando da própria casa expandida. Mas é o salário de
Maria que tem botado na mesa a pouca comida que os mantém vivos. Os
assaltantes levaram tudo. Quando encontrei a família, alguns dias
depois, Maria tinha conseguido com a patroa um adiantamento de apenas 10
reais. Seguidas vezes ela faz a limpeza toda sem ter comido nada desde o
dia anterior.
Aos 63 anos de vida ribeirinha, Otávio das Chagas não compreende a
lógica da violência urbana a qual é agora submetido: “É porque eu sou
uma pessoa que, graças a Deus, sempre fiz meus negócio direito. Eu não
ando mexendo com ninguém. Eu achei que o cara não tinha coragem de
entrar dentro de uma casa minha pra fazer uma coisa dessa. Eu não dou
atenção pra certas coisa. Se uma pessoa chega na minha porta, e eu não
conheço ela nem nada, eu trato ela bem. Eu ouvia falar, assim, mas eu
mesmo não conhecia essas coisa, não. No mato eu ando só em qualquer
lugar”. E Maria acrescenta: “A gente só via essas coisa na televisão”. E
Otávio retoma: “Toda vida eu falo isso e todos que conhecem nós pode
dizer: o que nós não temo coragem de fazer é pegar as coisa de ninguém.
Graças a Deus que para isso todo mundo tem confiança em nós. Por que é
que eu não tinha medo de ser assaltado? Porque eu não pego nada de
ninguém. Eu pensei que faziam o mesmo comigo. Mas não é desse jeito”.
Depois de ter sido arrancado da sua ilha,
Edilardo foi contratado para fazer o mesmo com macacos e preguiças. De
vítima virou algoz.Edilardo, que passou o assalto com um revólver na cabeça, tem
pesadelos recorrentes em que a arma é disparada pelo assaltante e ele
morre. Parece ter menos do que os seus 24 anos no corpo, parece ter mais
na tristeza dos olhos. “Aqui na rua eu não me sinto muita coisa, não”,
diz. “Sem estudo eu sou pouco.” O último emprego que teve o lançou numa
fronteira cruel. Para conseguir trabalhar, Edilardo cravou na alma os
arames farpados da contradição. Assim como os irmãos, ele foi contratado
por uma terceirizada da Norte Energia para fazer a “remoção” dos
animais nas ilhas. No dia em que teve que expulsar os bichos da Ilha de
Maria, a sua, ele chorou. Edilardo havia sido convertido de expulso em
expulsador. De vítima em algoz. Na perversidade pragmática do trabalho, a
vida violada viola. E os olhos de Edilardo ganharam uma dor nova:
“Tudo o que nós tinha feito a água tinha acabado. Planta acabou tudo.
Tudo queimado. Nós passava lá e via tudo destruído. Era muito muito
muito. É muito triste ver uma coisa daquela acabada assim. No primeiro
dia que nós fomos pra lá não vou mentir. Chorei mesmo. Chorei de
verdade. Comecemo a pegar bichinho de lá, e os macaco começaram a gritar
demais. Não vou mentir, teve uns que morreu. Morreu porque ia pegar e
caía na água. Cortava a árvore de motosserra, com eles nos galho, tinha
muito que morria afogado. Os paus caía tudo em cima, afogava. Teve deles
que a gente salvava, tinha muitos que morria. Era muita judiação.
Preguiça também, muitas morria. Paca, queixada, cotia... Tinha bicho que
tentava atravessar a nado, mas tava fraco, tava com fome. Não
conseguia. Pra pegar, não vou mentir, a gente quase enforcava eles,
porque com fome e medo, eles mordia. Se não pegasse assim, nós não
conseguia botar na caixa de madeira pra entregar pros biólogo. Eles
soltava os bicho lá do outro lado, mas acho que lá, fraco do jeito que
tava, os bicho morria também. Chorei no primeiro dia. Eu ainda não tinha
visto como tinha ficado. Depois que vi, chorei. Ver um negócio daquele
jeito e saber que não volta mais de jeito nenhum fica muito difícil”.
Maria interrompe: “Nós passa lá na nossa ilha e só tem uns pedaço de
pau no meio da água. Dá vontade de abraçar um pedaço de pau e ficar
agarrada ali a vida toda”.
Edilardo conclui: “O que aconteceu com nós é tipo o mundo ter acabado. Assim, ter virado a página”. Tão logo eu parto, no final da tarde, eles fecham a casa que não é
casa. Trancam-se num calor que ultrapassa os 30 graus à noite. Logo
depois, dois homens batem. Pedem um cigarro. Eles não fumam. Pedem água.
Eles não dão. Dentro de casa, eles temem ser alvejados. “Do jeito que
nós é unido, se mata um acaba a família”, diz Edilardo. A casa é cada
vez menos casa, cada vez mais toca. Assim como os bichos eram acuados
para a única parte da ilha ainda não devastada, com fome e com medo,
para que se tornasse mais fácil capturá-los, também eles estão ali.
Encurralados, só que “na rua”. Jogados num outro canto, onde fracos e
com fome também não conseguem viver, assaltados pelos mais fortes e mais
bem adaptados ao cotidiano de violência e precariedades de uma cidade
em que o esgoto escorre a céu aberto.
Encurralado: Edilardo
foi feito refém em um assalto à casa, revólver na cabeça, e agora tem
pesadelos recorrentes de que é assassinado Eliane Brum
Otávio das Chagas olha para as mãos e se envergonha: “Estão ficando
fininhas”. No mundo que ele conhece e que o reconhece, homem de mãos
finas é homem que não trabalha. Otávio se envergonha mais. Ele sofre
porque “na rua” ninguém precisa do que ele sabe fazer, ninguém quer
saber o que ele sabe. Está doente. Me mostra dois exames em que os
indicadores revelam uma próstata bem alterada, mas não consegue médico
para interpretá-los. Quando a dor é muita, ele compra uma caixa de 10
comprimidos de Finasterida, “pra ir passando”.
Quase todo dia ele caminha com suas dores e com sua fome por quase
uma hora, debaixo do sol amazônico, para visitar Antonia Melo na
organização Xingu Vivo Para Sempre. Antonia é a maior liderança popular
da região. Para Otávio, ela é o único ponto de referência em território
desconhecido e hostil. Antonia perdeu sua própria casa, destruída por Belo Monte numa sequência de cenas que lembram um terremoto. Mas, para Otávio das Chagas, Antonia é
uma casa. Ele vai lá para ser visto, para saber que existe. Otávio se
reconhece nos olhos de Antonia e então empreende o caminho de volta.
Sempre que se afasta dela, parece ficar mais longe de si mesmo.
Empreende sua viagem sem retorno com suas dores e com sua fome, mas um
pouco menos partido.Quem pode dizer quem é aquele que é?
Otávio das Chagas tentou, mas, como tem acontecido com tantos, não
foi reconhecido como ribeirinho. Nem com direito a ser reassentado junto
ao reservatório da usina. É a Norte Energia quem diz quem ele é, quem
tantos são. Não a vida, não a história, não a memória, não o
conhecimento produzido sobre o tema nas melhores universidades do
Brasil. Mas o empreendedor. Mas quem pode dizer quem é aquele que é?
Otávio, o homem que parece encolher, resiste. Anuncia que voltará
para o rio de qualquer modo porque viver é preciso. E ele só sabe viver
se navegar. Nas águas do Xingu. “Eu não sei andar de carro, eu não sei
andar de moto, eu não sei andar de bicicleta, não vou lhe mentir. Mas de
canoa eu sou profissional, todo mundo me conhece como profissional do
rio”. Como a ilha morreu afogada, Otávio promete se plantar numa beira
do rio e ficar. Desta vez, usará as unhas para fincar na terra se for
preciso. “Aqui, tudo é de acordo pra ir pro mato mais eu de novo”.
Otávio das Chagas está vivo porque ainda não desistiu de encontrar o caminho de casa.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
Não
é de hoje que espera-se da mulher o recato, a delicadeza e uma
fragilidade para muitos charmosa
e envolvente. Somos educadas
a não chamar palavrão, a
falar pouco, a estudar e só
namorar mais tarde, a usar roupas comportadas, a
falar pouco, a rir baixo, a
ser discreta, ser delicada e
mansa, a ser bela, ser magra
e comer pouco. Se possível, ser do lar também, porque ninguém é
de ferro. O que fazemos com a realidade de que somos humanas,
demasiadamente humanas? Deparamo-nos
então com realidades
próprias e de
amigas, dando conta que até
homens aparentemente
diferenciados, mais
progressistas e inteligentes, admiradores de mulheres avançadas e
independentes, não
sustentam a atração esucumbem à convivência com
mulheres que colocam-se no oposto da servidão ou da mansidão. Ao
ler o Think Olga por estes dias, deparei-me com esse texto da Luíse
Bello. É muito bom ver outras pessoas esforçando-se para tentar
refletir sobre nossa natureza humana, intrinsecamente complexa. Desde
a gênese somos assim: sem pólos, binarismos ou extremos. Como tal,
podemos sucumbir e sofrer, errar
e acertar, exagerar e faltar, e isso é a vida. Não
podemos nos descaracterizar em nome de uma máscara social,
sustentada por dores às vezes demasiado profundas. Nada
vale suprimir nossa humanidade. Então
o lance é o seguinte: vamos
gritar, desabafar, chorar e deprimir o tempo que for necessário. Faz bem.
A atriz Amber Heard
está sendo elogiada e celebrada por doar à caridade os US$ 7 milhões
que receberá no seu acordo de divórcio com o ator Johnny Depp. É como se
essa atitude fosse um “tapa com luva de pelica” na cara de todo mundo
que a chamou de oportunista quando ela o acusou de violência doméstica e
pediu a separação. Nessa história, Amber está “saindo por cima”. Mas
será que está mesmo?
A famosa página Humans of New York,
que traz retratos de pessoas comuns contando um pouco de suas histórias
na cidade, recentemente publicou o caso de uma senhora que, após traída
em um longo casamento com filhos e ver seu ex-marido casar-se com a
amante, passou por cima de sua própria mágoa para manter um bom
relacionamento com o pai das crianças, chegando até a participar de
festas em seu novo lar. Nos comentários, milhares elogiando sua
capacidade de ser uma “super mãe” que faz “tudo pelas crianças”. Mas o
que é “tudo”?
A escritora renomada J.K. Rowling
defendeu o nadador Tom Daley após ele ter sido vítima de trolls
homofóbicos no Twitter. Como é de praxe, conselhos do tipo “não alimente
os trolls”, “é isso o que eles querem”, “não adianta discutir”
começaram a pipocar, porque é isso o que esperam de quem sofre esse tipo
de ataque: que se calem, que sejam superiores, que não percam o seu
tempo com quem não vale a pena. Mas, no final, quem está pagando essa
pena?
Qual é a definição de ser superior quando uma mulher vive uma
experiência negativa, senão ignorá-la e fazer boas ações mesmo com seu
coração cheio de mágoas? Porque devemos almejar sempre sermos vistas
como santas, como pessoas tão superiores que jamais se afligem com as
provações terrenas, quando isso, na prática, significa um sofrimento
calado, uma raiva engolida? Isso tudo nos faz mal, nos adoece, mas
quantas vezes achamos isso melhor do que “descer o nível” e sermos
vistas como, imaginem vocês, humanas?
Para as mulheres negras essa situação se agrava por causa do
estereótipo de “barraqueiras”, como se agressividade fosse algo esperado
delas. Afinal, a ideia de uma mulher agressivamente lutando por algum
direito seu, nem que seja por respeito ou dignidade, não é muito
feminina. Esse tipo de atitude aborrece uma sociedade que nos quer ver
sempre mudas e coniventes com nosso próprio sofrimento. Quando algo nos
prejudica, SEMPRE há consequências emocionais: o que é esperado de nós,
porém, é que internalizemos a dor para não causar distúrbios no
privilégio masculino. Ser superior é fazer com a raiva sentida por uma
mulher silenciosamente imploda dentro dela e não exploda em praça
pública.
Mas estamos em guerra contra o machismo e vai haver explosões no
caminho. Nossa raiva tem uma razão de ser. E, se aprendemos que a
atitude certa ao sermos atacadas é ignorar, deixar pra lá, somos também
impedidas de exercer nossa liberdade de expressão. “Obrigar a pessoa
ofendida a ser superior é pedir que engulam uma traição, ofereçam perdão
automaticamente e, dessa forma, tomar para si ainda mais dor. É por
isso que ser superior é um saco. E, muito frequentemente, sexista”,
escreveu Elaine Lui em um artigo brilhante sobre o assunto (em inglês,
leia aqui: http://www.flare.com/culture/lainey-flare-eff-forgiveness).
Afinal, quando ofendidos, os homens são até celebrados ao reagir. Um
exemplo recente é o jogador Neymar que, após a vitória do futebol
masculino na final Olímpica, podia dar qualquer declaração positiva
sobre o significado desse momento, mas decidiu levar para o pessoal e
dizer: “Vocês vão ter que me engolir”, em infeliz referência ao
ex-técnico Zagallo que proferiu a mesma frase após também ter sido
momentaneamente desacreditado. Na internet, a reação foi de muita
compreensão ao Neymar e sabemos que o comportamento explosivo de Zagallo
sempre foi visto como parte de sua personalidade sem que isso
interferisse na sua capacidade profissional.
Aliás, homens do entretenimento constroem carreiras inteiras em cima
da fama de zangados, vide apresentadores de programas policialescos, que
se exaltam e até mesmo gritam diante das câmeras, e figuras
controversas como o rapper Chris Brown que, mesmo após um episódio
seríssimo e comprovado de violência doméstica, continua com sua carreira
praticamente intacta. A raiva masculina é perdoada e a das mulheres
deve se converter em perdão. Ainda que de maneira pacífica, uma mulher
que resolve falar sobre suas mágoas é vista como fraca, sentimentalóide,
alguém que não superou algo que já devia ter sido esquecido. É só
lembrar que Taylor Swift,
mesmo sendo branca e muito privilegiada, tem uma fama negativa por
escrever músicas sobre relacionamentos passados – como se diversos
cantores já não tivessem feito exatamente a mesma coisa (Olá, Adam
Levine e o álbum Songs About Jane).
Vamos combinar uma coisa? Na próxima vez em que formos magoadas,
feridas, traídas e prejudicadas, vamos “ser superiores” somente se for a
nossa vontade, se isso não nos matar por dentro, se nos trouxer paz e
segurança. Caso contrário, vamos respeitar nossos sentimentos e exigir
que os outros façam o mesmo. Diferente do que muita gente nos fez
acreditar a vida inteira, isso não é pedir demais. É apenas o que é
justo.#RaivaComRazão
Ler texto original no link: http://thinkolga.com/2016/08/26/nao-seja-superior-seja-voce-mesma/