domingo, 11 de março de 2018

Mulher independente, esse ser insondável

                 


        Em certa ocasião, estava apresentando um trabalho em um evento científico da faculdade, quando um rapaz do curso aproximou-se para ouvir a exposição. Ele observou tudo com interesse e disse-me, com certa intimidade de colega de turma: “Acho você uma mulher maravilhosa”. Ora, mulher… Era uma menina. Entrei na universidade quase adolescente ainda. Fiquei toda sorrisos e sem um pingo de graça. Agradeci rápido e logo retomei a explicação, como que tentando desviar do assunto. Era absurdamente tímida. Ele então insistiu: “Acho que teria receio de namorar contigo: você é muito independente, mas acho que vale a pena tentar, porque você é meiga”. Àquela altura tive que desenterrar-me para prosseguir com o trabalho. Na faculdade aprendi como os rapazes são insistentes e vão à luta quando querem alguém de fato.

     Algumas são casadas e têm filhos, não gostam de sair sozinhas ou de postar fotos desacompanhadas da família na capa do Facebook. Eu mesma passei muitos anos com uma foto familiar assim no perfil, mas não me importo de ir ao cinema ou de viajar sozinha. Faço com constância. É fundamental gostar da própria companhia e sempre fui assim. Já morei de todas as formas possíveis. Trabalho. Estudo. Faço o que dá na minha telha e não agride os outros. Sou independente? Sim, sei que sim. Mas sinto que há limiares, não julgo nada fora do razoável. A independência não tem teias tão intangíveis, e a minha não me parece suficiente para amedrontar ninguém. E se houver de afugentar algum homem mais inseguro ou imaturo, que bom! Penso que seja uma espécie de seleção natural muito oportuna.

         Durante séculos, a mulher foi sustentada pelo marido ou pelo pai, e devia a eles total obediência. A quem não colocou atenção sobre a História, é importante saber que houve épocas em que não lhe era permitido estudar (em muitos casos, sequer ler), e isso consequentemente levava a uma má reputação social. A mulher era considerada incompetente e incapaz. Foi há poucas décadas que tal realidade passou a mudar, pois a partir dos anos 1960 a mulher passou a adquirir mais liberdade, a paulatinamente libertar-se de submissões. Isso levou a sociedade a prodigalizar novos valores.
                Hoje, algumas contradições e incompreensões nublam um caminho que, a meu ver, deveria ser de mais clareza. Imagino que essa “mulher independente”, segundo alguns, pareça ser mais distante de uma mulher digna do amor, que seja uma pessoa fria, autossuficiente, que dispensa os afetos, que despreza os relacionamentos, que não tem fragilidades, que não se contradiz, que não clama por ajuda, que não chora de decepção, que não se magoa, que não é romântica, que não sente o coração acelerar e as pernas tremerem quando está com o menino por quem se encantou, que não se apaixona avassaladoramente, que não morre de amores com um simples beijo, que não valoriza um cheirinho no cangote. Que… Que… Calma, baby! Quanto pré-julgamento. Não é assim que a banda toca. Existe quem não seja tão sentimental? Existe sim. Existem solitárias convictas? Existem sim. Aliás, existem mulheres e homens assim. Não há chipe de gênero para isso. Tem para todos os gostos quando estivermos falando de humanidade. Por favor, nunca podemos perder de vista que somos complexos. O humano não cabe em caixinhas deterministas.
          Lembro que desde muito novinha – criança ou pré-adolescente mesmo – tinha sonhos de independência, e isso pra mim significava ter um cantinho só meu, com privacidade, longe da presença dos pais. Pode parecer precoce e de fato o é, mas a falta de privacidade e de conforto que se costuma ter em casebres faz a gente sentir auspícios de uma vida livre e independente. O fato é que só consegui cumprir a sina já adulta. Aos vinte e quatro anos precisei me mudar para uma cidade no interior do meu Estado, por necessidade de trabalho.
          Foi aí que novas camadas de uma Denise apareceram e revelaram-se novidade. Num contexto de total precariedade, mudei-me para essa cidade e fui parar pela primeira vez em uma casa só pra mim. O sonho de morar só finalmente estava se realizando, entretanto as condições não estavam favoráveis: não consegui locar um imóvel mobiliado, e como não podia pagar uma pensão ou mobiliar a casa, o jeito foi alugar uma casa sem nada. Além disso, os vizinhos logo informaram-me que parte da minha vizinhança era bastante complicada e perigosa.“ Tinha até criminosos”, advertiram. Bem, sugeriram que eu fosse morar com uma moça que residia com sua filha, uma criança de cinco anos, em troca de ajudar nas despesas da casa e do aluguel. Nada mais justo. Aceitei e assim fizemos durante um ano. Durante esse tempo residi assim nessa cidade, convivendo em um ambiente familiar. Não era bicho solto como julgava, vejam só. O fato é que eu estava errada sobre mim. Desenvolvo apego por pessoas, não sou desprendida como pensava.

           Experiências como essa mudam radicalmente a cabeça. Novos padrões se formam. Daí por diante passei a aceitar minha natureza totalmente dependente (ou social?) e relacional. Há uma necessidade real, sem a qual não há felicidade possível. Preciso me relacionar com pessoas. Então se morar sozinha significar independência, fico comprometida. Mesmo que more só e goste disso (realmente gosto de momentos sozinha), busco sempre o refúgio da família. E não se trata do conforto de depender da alimentação ou do pagamento de contas pelos pais, pois no meu caso é o contrário, já que sou responsável pelo aporte financeiro maior da família. É uma dependência quase holística: humana, amorosa e até fisiológica, eu diria.
             Embora saiba que precisamos de equilíbrio, que é importante abrir mão de tutelas exageradas e tardias e a se colocar na vida com autonomia, não é salutar perder a sensibilidade, a afetividade e os largos sonhos, como o de viver um grande amor, por exemplo. E não há nada de corrida por príncipe ou pela princesa aqui, embora as idealizações insistam em acompanhar-nos.
        Ser independente é uma delícia, meus caros. A independência é nada mais do que uma veracidade do ser, um poder interno de gerir as coisas, de determinar escolhas, de fazer o que quer, de estar com quem se quer, de ser o que se quer. Ela não é sinônimo de rigidez ou de gosto pelo isolamento. É triste se percebemos que essa representação tão errada do que seja uma mulher independente (sim, somos múltiplas mulheres independentes) amealhe uma parte da sociedade que escolhe conscientemente a via do preconceito, e não aceita que nós voemos. Ficam, então, as perguntas: A quem interessa que não voemos? Por que mulheres sem muito conhecimento e muita oportunidade sofrem ainda mais essa opressão? Ameaçamos alguém? Há vantagens em ser um ser submisso e com a aparência frágil?
          Se algumas de nós mulheres são frágeis, que sejamos com autenticidade e verdade, que isso não seja – nem de longe – a sombra da nossa essência. Afinal, bibelôs são lindos de doer, mas quebram com uma facilidade inacreditável. É bom que sejamos assim ou que tentemos juntos ser mais potentes? Que tenhamos empatia para nos fortalecer no encontro com o outro?
          O amor é por natureza gregário. Não há perigo de ninguém tirar nada de ninguém, se amor houver. E não se enganem, nada nos tira a capacidade de amar. “Eu te amo”, “Eu preciso de você” e “Eu me envolvi profundamente com você” talvez sejam frases que os homens quase não estejam ouvindo de nós, mulheres. Certas verbalizações fazem falta em nossas vidas, embora demoremos a saber disso ou a admitir. Mas lá no fundo, no mais profundo recôndito dos nossos sentimentos, amor e carinho fazem falta. Enquanto for a verdade do meu coração, não vou me incomodar de falar essas frases quando necessário. Resta controlar orgulhos e vaidades de ambos os lados para o amor florescer e a independência feminina ser uma realidade estimuladora, um sinal da evolução social dos nossos tempos, e não uma ameaça.

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