Perdoai, eles não sabem o que fazem?
Por Denise Araujo
“Novo mandamento vos dou: Amai-vos uns aos outros. Como eu amei a vós, assim também deves amar uns aos outros.”
João 13.34
Havia um centro de macumba perto de
casa. Bairro de subúrbio, sabe como é que é. As casas todas emendavam-se
erroneamente. Era uma fila de casebres que fazia sobressair uma casa maior aqui
e acolá. Na minha mente de menina, eram mansões: eu sublimava as coisas. Casas
grandes não permitiam ver o que tinha dentro delas. Não permitiam incomodá-las
e isso era empolgante para mim, moradora de um cantinho ínfimo e precário. Da
porta da minha casa o transeunte já prenunciava toda a rotina da família. Meu
sonho era ter um quarto só meu. Dormia com meus pais no único quarto que
tínhamos. Ao crescer e ficar maiorzinha, passei a dormir na cozinha; e quando
jovem, na sala. O quarto próprio só veio na idade adulta. Antes disso,
privacidade era luxo.
Falar daquele cantinho pouco
aprazível, onde morei até poucos anos atrás, é só a desculpa para introduzir um
texto que pretende ser um convite tímido ao amor. Tímido, mas ainda assim, um
convite. Pois bem. Continuemos na casinha que era só mais uma em meio às
outras. Mas o centro de macumba não. Ele era um dos lugares que destoava, pois
era maior, e aos olhos de uma criança, infinito de grande. Havia sessões às
sextas-feiras e aquela batucada toda dos ritos naturalmente chamava a atenção
daquela meninada solta e desocupada na rua. Cheios de energia (e de ruindade,
obviamente. Kkk), estávamos nós, eu e meus amigos, toda semana indo lá
atrapalhar o ritual dos pobres praticantes. Ficávamos longos minutos, um a um,
olhando no buraco da fechadura. Quando os pais e as mães de santo começavam a
cantar ou ministrar suas rezas, nós começávamos a gritar ensandecidos pelo
buraco do trinco da porta, até que vinha alguém enfurecido nos enxotar. Era a
hora de esticar as canelas e correr. Mas tínhamos energia e achávamos pouco.
Voltávamos e repetíamos tudo, e de novo, e de novo. Essa fase durou um
considerável tempo. Imaginem como aqueles ritualistas nos amavam?
Até eu, que tinha um temperamento mais
introspectivo e apagado, ia na onda da maioria, porque queria me divertir nas
raras vezes em que mãe deixava-me sair. Sim , é natural as crianças no subúrbio
terem certa independência e ficarem soltas
nas ruas, nos idos dos anos noventa. Contudo minha mãe era páreo duro, não dava
liberdades ou permissões regularmente. Nessa época eu tinha ódio. Hoje só
agradeço por ela ter sido cautelosa assim. Mais tarde muitos foram os
assassinatos de colegas de infância, o envolvimento com tráfico de drogas e com
outros crimes, as prisões, as prostituições, enfim. Nas décadas de oitenta e
noventa os tempos eram outros. Hoje a chapa é quente. Apesar das Quintas sempre
ter sido um bairro tipicamente periférico e como tal viver uma realidade humana
muito particular, na qual o pior às vezes vira mera rotina, hoje há uma
escalada maior da violência, de modo que não é salutar deixar os filhos livres
das vistas dos pais, confiando em ruas aparentemente tranquilas ou em vizinhança
solidária. Como consensua a sabedoria popular, o “ seguro morreu de velho”.
A repreensão pura não faz verão. Era advertida a não
ir importunar os pobres pais de santo, mas não era educada conscientemente em
casa a respeitar a individualidade alheia, quiçá de um grupo ou de uma cultura,
quiçá de um rito religioso em um país legalmente laico. Meus pais deram-me
seguramente aquilo que puderam em suas condições, não podiam mais. Com baixa
escolaridade e sobreviventes de uma vida muito dura, não há muito o que se
fazer. Eu compreendo, e hoje sei que a educação pelo exemplo foi a pedra
fundamental para mim. Era um ser pra dentro. Religiosa. Rezava terços. Adorava uma procissão e
preparei-me para ser noviça, entretanto não sabia como lidar com o diferente. Tudo
que não emulasse o Deus cristão, as imagens dos santos ou a “Pietá” de Michelângelo
– com o cristo morto e nu nos braços, renegava sumariamente. Era ocultismo.
Estava longe de saber que a intolerancia
religiosa é um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humanas. Como as explicações sobre o diferente não me vieram
a tempo, eu perturbei, e perturbei muito. Minha mãe hoje é amiga da dona do tal
centro e, mesmo quase trinta anos depois, sinto vergonha de abordar e dizer que
eu era uma das tais maritacas do passado. Felizmente isso mudou e ficou no passado
infante. O conhecimento pode ser libertador.
É necessário no mínimo saber que a liberdade de culto no Brasil é
assegurada pela Declaraçao Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição
Federal, no seu Art. 5, inc. VI. Além, disso, Por força desses dispositivos constitucionais, diz-se que o
Brasil é um Estado laico, ou seja, o país é legalmente obrigado a permitir a
liberdade religiosa. Hoje
respeito e reputo saudável a existência dos diversos credos, bem como a falta
deles também.
Em nosso caso, entretanto, é cotidianamente difícil fazer valer a
lei nesse aspecto. Percebe-se que parcela da população tem sofrido
drasticamente com a intolerância, principalmente as religiões oriundas da África,
como Candomblé e Umbanda. Não era apenas de mim, quando criança, que religiões
e ritos como a macumba sofriam rejeição, o que leva a pensar que o Estado
precisa agir educativamente para reforçar esses valores de respeito. Ministério
da Educação, juntamente com governos federal, estadual e municipal podem e devem
investir numa educação religiosa que abranja o ensino de diferentes religiões
nas escolas, a fim de formar crianças e adolescentes mais respeitosos e
conscientes.
Segundo a Rede Brasil Atual, o Brasil possui
atualmente estimados 160 milhões de cristãos, ou 80% da
população. Nessa conta entram evangélicos, católicos e espíritas. Não
bastasse a intolerância religiosa, o país tem amargado outras intolerâncias. O
cristianismo prega valores humanos como a paz, a tolerância e a solidariedade,
portanto seria coerente que formasse declarados cristãos em pessoas de no
mínimo boa vontade. Exemplificando com um acontecimento recente, vemos a
repercussão da morte da ex-primeira-dama Marisa Letícia, falecida no dia 03-02-2016
vitimada por um AVC. A internet foi o ambiente para mensagens veiculadoras de
ódio ( algumas citando o nome de Deus para justificá-las), passando bem
distantes de valores como pesar, luto ou compaixão pela dor alheia, que
comumente uma sociedade cristã e culturalmente avessa à morte costuma gerar. Segundo
Aline Ogliari, secretária nacional e coordenadora da Pastoral da Juventude, as
manifestações sobre Marisa Letícia na história recente revelam um caso emblemático:
“Perder a capacidade da compaixão, da sensibilidade, da convivência com o
diferente, numa perspectiva política, mostra que a gente chega a um estágio de
fascismo político, mostra que para ‘minha ideia’ aparecer eu tenho que
aniquilar o que é diferente.”
Intolerantes
religiosos, cristãos que não seguem os preceitos declarados de sua religião e
fascistas que não têm pudor de demonstrar desejos cruéis de aniquilação ou
anulação do próximo. Poderíamos naturalmente perguntar o porquê disso. Incoerência?
Falta de perspectivas? Irracionalidade? Maldade intrínseca? Perda do amor?
Incompetência para a sensibilidade? Sugiro que não respondamos de pronto tais
perguntas. Tentemos o caminho socrático, fazer dessas algumas questões
filosóficas com as quais deveremos nos preocupar talvez até a exaustão, pois
não é possível viver em uma sociedade equilibrada e harmoniosa com crasso número
de pessoas demonstrando graus patológicos de incivilidade.
Ainda
segundo Aline Ogliari, o país assiste a uma "perda da sensibilidade, da
capacidade de convivência com o diferente, o que, no caso, é um ataque a Lula,
uma figura simbólica e a tudo o que representa a figura do Lula. Por isso a
mídia hegemônica bate em cima do jeito que bate e a classe média e a falsa
burguesia também batem. O ataque é à figura simbólica que o Lula
representa na luta de classes.” A
crítica política é um exercício democrático. Nos últimos anos, foram constantes
as críticas que os movimentos sociais fizeram aos governos do PT, por exemplo,
o que é muito natural. Numa visão mais ideologicamente à esquerda, acreditou-se
num projeto de país com suas reformas estruturais finalmente colocadas para
atender o povo, ou seja, um mesmo partido ou ideologia pode receber críticas de
seus consortes, aliados e opositores. Os
diálogos políticos devem urgentemente ser encarados como saudáveis – e não como
espaços indesejados, aprofundador de animosidades ou, o que é pior, de litígios
pessoais, posto que são parte da convivência democrática. A política prescinde
disso. A política é isso, aliás. Como diria o barroco Gregório de Matos, que
escreveu sobre os prazeres mundanos e espirituais: “ O todo sem a parte náo é
todo, a parte sem o todo não é parte, mas se a parte o faz todo, sendo parte,
não se diga que é parte, sendo todo”. O debate é
coletivo, é desgastante. Evidencia as contradições e dissonâncias. Prescinde de
saber ouvir, aceitar que o argumento alheio pode ser superior, rever conceitos.
Obviamente não é simples. Entretanto não fazê-lo tem um preço muito alto. As
instituições e os governos amadurecem a passos muito lentos e por vezes até
deixam de evoluir. É necessário interromper a lógica descrita
pelo professor de Ética e Filosofia Política da USP, Renato Janine, segundo a
qual no Brasil não há tradição de dissonância.
Já ouviu falar de seres humanos que
foram isolados em florestas como cobaias de estudos científicos e tornaram-se
criaturas bem diferentes de nós, selvagens como os animais da selva? Pois é.
Nós não estamos nesse bioma. Vamos aprender a nos virar por aqui mesmo. Demover
nosso medo ou nossa indisposição para conversar. O que não é “natural” é o
caminho que o país está seguindo, confundindo diálogo com ataques declarados.
Os ataques à Marisa Letícia, por exemplo, são inconcebíveis de acontecer em um
país que declara-se majoritariamente cristão, hodiernamente e no decorrer de toda
sua história. O cristão que não ama está desobedecendo a Cristo. Simples. Somos
chamados a amar no primeiro mandamento do decálogo, portanto é uma ordem. A
quem declara-se cristão e não ama, caberia a reflexão: Está realmente tendo
temor a Deus?
Ora, o
amor é uma característica distintiva de Deus. Se nós o amamos, também temos que
amar o nosso próximo. As palavras sagradas sugerem uma relação de implicação.
Mas podemos não saber quem é esse próximo que devemos amar. Podemos, inclusive,
usar isso como desculpas para nossa falta de amor no geral ou em relação a
alguém. E a própria bíblia aponta que o nosso próximo é qualquer pessoa que
necessita da nossa ajuda. Quem ama ora, intercede e pede a Deus para abençoar
aqueles que estão em sofrimento, mesmo que eles tenham nos prejudicado de
alguma forma. Eis a grandeza. Dizia o papa João Paulo VI: “ Quando olhamos ao homem com amor, já chegamos
às fronteiras de Deus; porque esse homem que amamos e respeitamos é imagem de
Deus. E então, não custa cumprir o primeiro dos mandamentos. Tanto é assim,
irmãos, que nossa ocupação na eternidade será essa: amar, glorificar, ser
felizes com Deus nosso Senhor.”
Por fim, é precioso recordar as palavras do beato mártir
Oscar Arnulfo Romero (1917-1980), arcebispo de San Salvador. Pastor e defensor dos direitos humanos, que foi
assassinado enquanto celebrava a Santa Missa: "Hoje
a palavra de Deus nos convida à interioridade. ‘O Reino de Deus está dentro de
vós’. Vivemos muito fora de nós mesmos. São poucos os homens que de verdade
entram dentro de si, e por isso há tantos problemas, porque se de verdade nos
colocássemos em nossa própria intimidade compreenderíamos que a voz do Senhor,
a lei que nos santifica, não está lá nas alturas do céu somente. De que
serviria, nos dizem os documentos da Igreja, mudar todas as estruturas sociais,
políticas, econômicas, se não se muda o coração dos que hão de viver e manejar
estas estruturas? Enquanto os que se preocupam dos problemas não entrarem
dentro de si e desde seu próprio coração escutarem a palavra de Cristo, que nos
diz terminantemente ante o doutor da lei que lhe pergunta qual é o principal
mandamento: ‘Amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma,
com todas as tuas forças, com todo teu ser”, de nada adiantaria mudanças exteriores’.”
Se há algo que permite alguém nascer
em uma realidade desfavorável rodeada de restrições ser resiliente com as
dificuldades e formar-se um bom humano é a resiliência (explicação
sociológica), o propósito divino (explicação religiosa) ou o amor (explicação
minha mesmo); de outra forma o que faz alguém com história de vida inversa, e
portanto mais feliz, com necessidades para a dignidade atendidas e envolto de
bons referenciais humanos tornar-se alguém incivilizado é algo obscuro para
mim.
Penso que, para além de uma educação
religiosa, educar para o amor e o respeito sejam o caminho mais seguro. Foi o
que aconteceu comigo, não pela via intelectual, mas do exemplo. Eu olho para
minha mãe e, de tão virtuosa que ela é, sei de imediato como devo ser
e o que fazer. O sentimento de amor soterra preconceitos e dilata o
olhar para a compaixão. Exemplo mais fundador o nosso ousado Jesus não poderia
ter deixado, uma vez que sentava-se à mesa com pecadores; acolheu Maria Madalena – conhecida como libertina
e portadora de sete demônios - como discípula, fê-la primeira testemunha da
ressureição e elogiou a veracidade da samaritana, que estava no sexto marido
(algo escandaloso para a época); bem como defendeu uma mulher adúltera da
violência dos fariseus.
Os cristãos já conhecem (talvez os não cristãos também, tal o lastro cultural do
cristianismo no ocidente) : nós fomos escolhidos
não apenas para a realidade ou mítica de viver uns anos neste mundo e depois ir
para o céu. Cristãos receberam uma missão, que foi a de anunciar o Evangelho de
Jesus e expressar o amor de Deus para a humanidade. Se sua prática
religiosa ou espiritual não se transfigura empiricamente em amor, é hora de
parar e refletir. O amor é o único
que pode transformar o mundo, verdadeiramente.
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