sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Atribuição da filosofia em momentos como este é acelerar o desabamento





Nestes tempos de horizontes mundiais incertos e realidades políticas brutalizadas, é comum em palestras que profiro alguém perguntar sobre como a filosofia poderia nos auxiliar para nos sentirmos melhores. Esta é uma pergunta que parece aceitar de bom grado que o discurso filosófico teria alguma forma de função terapêutica a ser ouvida, principalmente em momentos de crise.
De fato, a pergunta não é estranha se lembrarmos da experiência social da filosofia nos últimos anos entre nós. Durante certo tempo, as livrarias brasileiras foram invadidas por títulos do calibre de "Mais Platão, Menos Prozac" ou "Schopenhauer e a Arte de Viver Bem". 

Como se o lugar do discurso filosófico fosse em algum ponto entre a prateleira de autoajuda e seção de livros clássicos. Falava-se algo sobre a "verdadeira felicidade", fazia-se uma crítica genérica ao curso do mundo, ao mundo em que tudo é mercadoria, aos "falsos prazeres". 


Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração Vladimir Safatle de 16.set.2016

        Assim, encontrava-se um lugar para a filosofia na agenda das preocupações do dia. Daí a pedir que a filosofia funcione como um grande depositário de fórmulas de consolação foi um passo não muito longo. 

        Bem, se me permitirem, eu teria a tendência inversa. Gostaria de dizer que, se o discurso filosófico tem alguma função em momentos como este, é o de acelerar o desabamento, e não servir de síndico de prédios abandonados e arruinados. 

        Se Hegel um dia afirmou que o caminho da formação da consciência era o caminho do desespero, não foi um acaso. De certa forma, não é errado dizer que a filosofia, em seus setores mais avançados, foi, desde seu início, um regime de discurso constituído para permitir às sociedades criticarem as estruturas normativas que procuravam se fazer passar por representações naturais –estejam tais estruturas no campo das expectativas cognitivas, morais, estéticas ou na reflexão sobre a natureza da vida social, entre tantos outros. 

        Por isso, o maior antípoda do discurso filosófico sempre foi o senso comum e seu sistemas de pressuposições que se colocam como evidências. O senso comum quer que continuemos a pensar como pensamos, enquanto o discurso filosófico lembra que não é mais possível pensar da maneira como pensamos até agora. Quer dizer, a razão de ser do discurso filosófico sempre foi orientar as possibilidades da crítica, sempre foi apontar para o que é ainda uma latência da existência.
No entanto, é certo afirmar que a filosofia sempre foi o discurso daqueles que amam o que é ainda uma mera impossibilidade. 

        Para alguns, isso pode passar por exercício ocioso, mas outros lembrariam que tudo o que realmente fomos capazes de produzir foi impossível algum dia. Impossível é apenas o que não pode ser pensado na situação atual, mas há sempre aqueles que lutam com todas as forças para levar os sujeitos a acreditarem que, fora da situação atual, só haverá o caos, o terror, a catástrofe. Há os que se especializaram em paralisar pessoas através do medo. Que eles sejam bem pagos. 

        Nesse sentido, não é um acaso que o discurso filosófico se fortaleça exatamente quando as sociedades nas quais ele aparece começam a entrar em colapso. Ele é uma sismografia dos abalos que ocorrerão mais tarde. Assim, a filosofia das luzes (Rousseau, Voltaire, Diderot) foi o prenúncio do colapso do sistema absolutista, e não sua expressão. 

        O idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel) foi gestado em um país retardatário e em luta contra seus arcaísmos. Nesses casos e em tantos outros, o discurso filosófico não apareceu como reflexo de uma época, mas como estratégia do espírito do tempo para levar uma época determinada mais rapidamente ao seu ponto de desabamento. 

        Lembrar disso é uma maneira de responder àqueles que anseiam por esquemas práticos o mais rápido possível. Como dizia à sua maneira Heidegger, muitas vezes agimos para não pensar. Ou seja, fazemos de tudo para novas questões não aparecerem, nem novas maneiras de responder a velhas questões. 

        Assim, podemos continuar a agir produzindo os mesmos erros de sempre. Uma ideia, ao contrário, é sua força de enunciação e a internalização do movimento de seus erros. Não houve ideia verdadeira alguma que não tenha começado errando. 

Obs.: O texto acima reproduzido foi publicado originalmente no site, que detém todos os créditos: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/09/1813733-atribuicao-da-filosofia-em-momentos-como-este-e-acelerar-o-desabamento.shtml

A falência do ensino brasileiro não é de seus professores

Vladimir Safatle


Depois de um anúncio catastrófico do projeto de reforma educacional do ensino médio proposto por aquilo que alguns chamam de "governo", esta semana viu uma sucessão de esforços para tentar vender à população a tese de que enfim chegaram as ações esperadas. 

Órgãos de propaganda do dito "governo" travestidos de revistas semanais apresentaram o projeto como um conjunto de medidas corajosas que visariam revolucionar o engessado ensino brasileiro. O senhor que ocupa o cargo de ministro da Educação apareceu enfim para tentar defender o projeto feito por sua equipe, isto enquanto o próprio Michel Miguel ligava não para especialistas em educação, mas para Fausto Silva, vulgo Faustão, para convencê-lo da grandeza do projeto criticado pelo referido.

Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração de Marcelo Cipis da Coluna de Vladimir Safatle de 30 e setembro de 2016

Que uma das primeiras medidas do "governo" fosse intervir na educação nacional, eis algo que não deveria surpreender ninguém. O projeto apresentado nem de longe expressa alguma preocupação real com o aumento da qualidade de nossas escolas e com o desenvolvimento integral de nossos alunos. Seus eixos centrais são a segregação, a precarização da atividade docente e o puro e simples obscurantismo. 

Não é de admirar que a verdadeira equipe que produziu este projeto seja composta por "especialistas" que trabalham há décadas nos governos FHC, em Brasília, sob a batuta do ilibado José Arruda e nos governos tucanos de São Paulo, com resultados pífios e medíocres. De fato, não poderia ser diferente, já que a regra dessas senhoras e senhores é impor uma visão tecnocrata que despreza a inteligência prática de professores envolvidos nos processos de ensino, sendo os únicos realmente capazes de indicar o que funcionaria e o que não funcionaria. 

Contrariamente ao que se tentou vender, este país fez mudanças drásticas e constantes no ensino nas últimas décadas. Todas pecaram por desprezar os saberes daqueles que estão diretamente envolvidos nos processos, dando voz a burocratas e tecnocratas que nunca pisaram em uma sala de aula ou que não fazem isto há anos. A falência do ensino brasileiro não é de seus professores, mas de seus tecnocratas de gabinete. 

Veja três características mestras da dita reforma. Primeiro, ela cria diferentes possibilidades de escolhas para os estudantes depois de um período comum de um ano e meio. Eles poderão ter concentração de disciplinas em linguagens, matemática, ciências da natureza, humanas e ensino técnico. Até aÍ, nenhuma polêmica. Há anos todos os realmente envolvidos com educação insistem que os alunos devem poder escolher disciplinas mais próxima de seus interesses. Mas, como o diabo mora nos detalhes, a questão é: as redes e escolas podem não oferecer aos alunos todas as opções de concentração. Ou seja, você dorme com a promessa de uma escola mais diversa e acorda com a realidade de uma escola onde, por exemplo, a concentração de humanas não existe, onde o eixo de todos os esforços é o ensino técnico. O resultado será abrir as portas para uma segregação que consistirá em levar as escolas em regiões mais carentes a cada vez mais oferecer ensino técnico, cuja empregabilidade é mais rápida, porém muito mais precária. 

Por outro lado, qualquer programa minimamente sério começaria por qualificar melhor o corpo docente. Mas isso passaria por acabar, de uma vez por todas, com a precarização e os salários vergonhosos dos professores, uma das maiores razões para que nossos melhores alunos não queiram mais ser professores. O que há a esse respeito na dita reforma? Nada. No entanto, o projeto prevê que poderão ser contratados professores sem licenciatura, portadores de "reconhecido saber". Dificilmente haveria proposta mais absurda e irresponsável. Como dizia Hegel, não é porque todos têm mãos que todos podem produzir sapatos. Mas um governo que apresenta uma proposta como essa despreza os conhecimentos técnicos necessários para a docência. 

Por fim, havia a proposta medíocre de transformar artes, educação física, filosofia e sociologia em matérias não obrigatórias. Agora, a BNCC decidirá o destino, mas a pedra já está cantada. De fato, para os tecnocratas a sociedade não deve precisar de cidadãos que conheçam conceitos como conflito social, desencantamento do mundo, anomia social, modernização reflexiva, ética, moral, classe, consciência, razão, estética, lógica, pensamento crítico. É verdade, para votar em Michel Miguel e sua turma, é melhor não saber nada disso. 

Texto reproduzido originalmente publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/09/1818065-a-falencia-do-ensino-brasileiro-nao-e-de-seus-professores.shtml

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O que o casamento com Marcela diz sobre Michel Temer.

Por Nathalí Macedo 

Postado em 19 May 2016
O interino e sua mulher troféu
                                             O interino e sua mulher troféu

       O relacionamento de Michel e Marcela Temer faz com que pese sobre ele mais uma dentre tantas acusações: o interino encara mulheres como troféus, nada além disso.
Afirmo isso porque um homem de mais de 60 anos que se casa com uma quase adolescente não está movido tão somente pelo amor – nestes tempos, até mesmo o amor precisa ser politizado. O que o move é a ânsia de afirmar-se como macho provedor, capaz de carregar uma mulher dita perfeita a tiracolo, como um belo acessório.

       Imagine uma mulher de 19 anos que conhece um homem de 62. Imagine que esta mulher vê neste homem a sua grande chance de felicidade: uma vida maravilhosa, rodeada de empregados, roupas de grife. Só que essa mulher mulher acaba privada de outras escolhas que pudesse fazer na vida.

       Não foi Michel Temer que privou Marcela, a jovem sonhadora de Paulínea, de outras escolhas: foi a sociedade patriarcal, que lhe disse, desde muito cedo, que seu sonho mais ambicioso deveria ser casar-se com um homem “bem-sucedido” (entre muitas aspas).

       É uma ambição mesquinha, eu diria, mas a cada um cabem as próprias escolhas.

       Os homens – os de direita e os de esquerda – podem até acreditar que Marcela não foi vítima de qualquer abuso. A própria Marcela deve acreditar piamente nisso, mas a verdade é que uma mulher que se casa com alguém 43 anos mais velho – e, neste ponto, peço licença para julgar o “amor” alheio – só pode estar movida pelo desejo de ser aceita da única maneira que uma mulher é aceita nesta sociedade: à sombra de um homem “poderoso”.

       O que não devemos esquecer é que, com 19 anos, uma mulher não conhece ainda nada da vida, principalmente se viveu em uma cidade interiorana desde que nasceu. Suas escolhas estão pautadas no pouco que conhecem, no que os outros esperam delas, no que elas acreditam ser o sucesso – para Marcela, Michel é o sucesso.

       Paciência.

       O fato é que um homem que exibe orgulhosamente uma esposa quarenta e seis anos mais jovem – imaginem, de relance, se Dilma fosse casada com um homem 43 anos mais jovem! – não encara o casamento como uma união, mas como um negócio, um jogo de ego e autoafirmação.

       Para um homem que mantém sua bela esposa numa coleira invisível, não existe companheirismo e não existe horizontalidade: existe apenas o casamento subserviente, tal qual no século XX, e eu não confiaria em um homem que mantém esse tipo de relacionamento nem para segurar a porta do elevador, quanto mais para governar o meu país.

       Barack Obama, por exemplo, tem uma esposa com idade próxima à sua, que mantém, livremente, a própria identidade e toca, sozinha, os próprios projetos sociais – inclusive de cunho feminista – enquanto Marcela Temer é apenas a bela de estimação de seu marido.

       Esta é a nítida diferença entre ambas: Michelle existe, enquanto Marcela é apenas objeto decorativo utilizado ardilosamente para limpar a imagem – como se fosse possível – de seu homem.

       Nosso país é governado por um homem que não acredita na necessidade de mulheres em seu Ministério e encara o casamento como um mero garantidor do status de macho-alfa.

        Michel Temer é o nítido retrato do retrocesso em todos os aspectos.


Nathali Macedo
Sobre o Autor:    Colunista, autora do livro "As Mulheres que Possuo", feminista, poetisa, aspirante a advogada e editora do portal Ingênua. Canta blues nas horas vagas.
 
Veja o texto publicado originalmente no site: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-que-o-casamento-com-marcela-diz-sobre-michel-temer-por-nathali-macedo/

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Casa é onde não tem fome

Casa é onde não tem fome

A história da família de ribeirinhos que, depois de expulsa por Belo Monte, nunca consegue chegar

 

Texto de Eliane Brum





Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras

     Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, não consegue chegar em casa. Desde que ele e sua família foram expulsos de sua ilha pela hidrelétrica de Belo Monte, Otávio já está na terceira casa. Mas não consegue chegar. Porque para ele aquela terceira ainda não é uma casa. Como não era a primeira nem era a segunda. Sem casa, Otávio não tem mundo. Sem mundo, um homem não tem onde pisar. Os conhecidos avisam: você já viu, seu Otávio está encolhendo. E ele está, porque é isso o que acontece com os homens sem mundo.

     O que é uma casa é a pergunta que atravessa a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, no Estado do Pará. A pergunta que não foi feita no cadastro nem em momento algum. É a pergunta que diz quem aquela pessoa é. E onde ela precisa viver para ser o que é. Quando é o empreendedor, o novo nome do colonizador na Amazônia, que determina o que é uma casa, com base no seu mundo e nas suas referências, em geral forjadas na realidade bem diversa do centro-sul do Brasil, a violência se instala. E vidas são aniquiladas.

     Acompanho Otávio das Chagas desde 2014. Naquele momento, ele, sua mulher Maria e os nove filhos estavam na primeira casa que não podia ser casa. Uma casa de madeira alugada numa periferia violenta de Altamira. Em 2015, mudaram-se para uma “unidade” de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), nome dos conjuntos habitacionais padronizados que a Norte Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção compulsória”. Em 2016, dividiram-se: os dois filhos mais velhos permaneceram na casa padronizada, um deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os filhos mais jovens transferiram-se para uma casa doada por um grupo de austríacos que se comoveu com as tribulações do pescador sem rio e sem letras.


     Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam fome – mas a fome não se deixa escrever.Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam fome. Tinham teto, mas passavam fome. Era oficialmente uma casa, mas passavam fome. Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na semana passada, havia também uma cebola pequena. Fome é algo que fracasso em descrever. A fome não se escreve. Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a escritora brasileira que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”.

     Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que sente quando chega a passar até dois dias sem comer: “Dá uma dor no estômago, uma tontice”. É uma pista, mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o que fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”, ela continua. É outra pista, mas ainda não é a fome por escrito. Jamais será. A fome é algo tão avassalador que irredutível às palavras. Encaro os olhos fundos de Adriano, o menino de sete anos, e entendo sem letras. Entendo, mas sigo sem alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me falta a experiência. Adriano é mais uma doce criança com olhos de velho deste mundo. Quando o encontrei na segunda casa, a do RUC, em 2015, era o dia do seu aniversário. E não havia sequer um pedaço de pão para Adriano comer.

     Casa é onde não tem fome, eles me ensinam. Se tem fome, é só teto.
Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de 30 anos na Ilha de Maria, uma das centenas de ilhas do Xingu. Viver talvez não seja a palavra exata. Eles pertenciam à ilha de Maria. É inversa essa questão da posse. E não apenas por questões da lei. Mas porque é a ilha que se apossa das pessoas, que lhes conforma o corpo e a existência, que lhes desenha a arquitetura do tempo. Na ilha, Otávio, Maria e seus filhos sabiam. Quando expulsos para a “rua”, nome que os ribeirinhos agroextrativistas de várias regiões amazônicas dão à “cidade”, são esvaziados de saber. Assim, essas casas, na “rua”, serão de certo modo sempre “rua” – e não casa.

     Otávio das Chagas explica: “Pra roçar uma juquira, pra trabalhar de roça, pra toda coisa de mato, eu sou profissional. Peixe, eu sou profissional também. Mas pras coisas da rua, a gente não sabe. Meus menino ainda sabe ler, mas é só uma coisinha. Não tem vida pra nós aqui”. Maria completa: “Aqui na rua é tudo no dinheiro. Se não tem dinheiro, não come. Até a água é paga, todo mês 120 real”.


     Para quem teve sua ilha afogada, viu sua memória virar água, restou apenas o território do próprio corpo, onde perseguem cicatrizes para provar que existem
Quando são expulsos da ilha a qual pertencem, Otávio, Maria e seus filhos já não reconhecem nem se reconhecem, porque a ilha era também espelho. Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de uma guerra, de um terremoto ou da fome, haverá sempre a terra que ficou, haverá ruínas, haverá os mortos ali enterrados para dar conta do que foram, mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus filhos perderam a materialidade do que viveram, a memória física do que eram, do que são. Tudo o que dizia deles virou água pela força de Belo Monte. Da ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles apontar as cicatrizes que documentam uma vida no único território que lhes restou: o do próprio corpo.
 

     Desde então, eles pisam “na rua”, mas não encontram o chão. Essa experiência desestruturante é de difícil compreensão para aqueles que sempre têm para onde voltar. É penosa de entender mesmo quando se quer entender. Mas quando os colonizadores sequer percebem que é necessário compreender, caso dos protagonistas da hidrelétrica, seja como governo, seja como empresa, resta só a violência. E ela vai matando aos poucos.

     Quando foi expulso, em 2012, Otávio assinou com o dedo papéis que não era capaz de ler. Seus filhos assinaram por ele papéis que não eram capazes de ler. Receberam 12.994,02 reais como indenização. Sua casa não foi considerada uma casa. Não cabia no conceito de casa do empreendedor. Quando a “remoção” dos habitantes das ilhas, das beiras e dos baixões, assim como das terras rurais, foi determinada, não havia defensoria pública na região. O Governo de Dilma Rousseff abandonou a população do Xingu sem qualquer proteção jurídica na maior obra do setor elétrico do país, à mercê dos advogados da Norte Energia, uma violação de direitos que manchará para sempre a biografia da presidente hoje afastada. Otávio e sua família foram jogados num dos bairros mais violentos da periferia de Altamira, onde pagavam um aluguel que, junto com a doença de uma das filhas, comeu o dinheiro em meses. A casa alugada foi a primeira não-casa.


A primeira não-casa: a família de Otávio das Chagas na casa alugada na periferia de Altamira, em novembro de 2014.

      Otávio das Chagas não entende uma casa que ele mesmo não bota em pé: “Eu não sei trabalhar de pedreiro. Mas eu sei fazer uma casa nossa. A senhora sabe o que é uma casa coberta de cavaco? Aquelas eu sei fazer”. E descreve em detalhes como se constrói “uma casa boa e bem-feita”, como a que tinha na ilha e que não foi reconhecida como casa pelo empreendedor. Esta casa, que a cada cheia do rio ele precisava reconstruir, assim foi descrita em despacho da Norte Energia: “estrutura rudimentar de madeira com cobertura de palha”. Para compreender o que é uma casa, em toda a sua inteireza, é necessário escutar os ribeirinhos com mais atenção: a casa não é uma “estrutura”, apenas, mas algo mais extenso no qual é abarcado todo o seu entorno, as árvores, a roça, a mata, o rio. A casa é fora e dentro – é um amplo e um tudo.
 


     Casa é fora e dentro, é um amplo e um tudo, é onde se faz laços que garantam a sobrevivência e também a alegria.Maria explica: “Lá na ilha a gente tinha tudo, a gente tinha fruteira, a gente tinha peixe, a gente tinha caça, a gente tinha roça, a gente tinha remédio do mato, a gente tinha água, a gente tinha vizinho, a gente tinha sombra, a gente brincava, no sábado vinha gente de todo lado, os homem jogava futebol, as mulher tratava o peixe, assava e brincava. Lá na ilha a gente tinha fartura. Aqui, nós compra banana e qualquer pouquinho é um preço doido. Lá nós tinha tanta banana que jogava pros bicho”. A casa não é apenas uma “estrutura rudimentar de madeira com cobertura de palha”, como descrita pelo etnocentrismo do empreendedor. O conceito de casa é estendido. Casa é onde não se passa fome, é onde se faz laços que garantam a sobrevivência e também a alegria.

Com a chegada bem tardia da Defensoria Pública da União à cidade de Altamira, no início de 2015, Otávio das Chagas recebeu uma das casas padronizadas, construídas pelo empreendedor sem qualquer respeito ao conceito de casa daquela população. As unidades padronizadas poderiam estar em qualquer lugar, na Amazônia ou na serra gaúcha. São genéricas. As vítimas de “remoção compulsória” foram lá jogadas sem nenhuma preocupação em manter as relações de vizinhança e os laços comunitários, essenciais para a sobrevivência e para a preservação de uma memória comum. Esse cuidado que não houve poderia ter desempenhado um papel essencial ao reconhecimento mútuo num momento tão desestabilizador para as famílias atingidas.

     Nesta casa genérica, onde a família não cabia inteira, apenas se amontoava, nesta casa “abafada”, Otávio das Chagas me pediu um dia para desenhar um mapa do Brasil, para mostrar de onde eu vinha. Onde era a minha ilha, meu pertencimento. Desenhei um mapa mal desenhado. E percebi que ele continuava perdido. Mesmo que eu desenhasse mil mapas perfeitos, ele seguiria perdido, porque sua ilha já não estava nele. Sua ilha afogada já não existia no Brasil.


A segunda não-casa: Otávio das Chagas e a mulher Maria numa unidade de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), na periferia de Altamira, em setembro de 2015, com as plantas que restaram

      Naquele momento, as crianças menores não frequentavam a escola, porque tinham medo de ônibus. Elas só conheciam canoa. Quando viviam na ilha, um barco passava para entregá-las à professora. Enquanto sofriam de fome naquela casa genérica, um carro de som passava anunciando aos berros que Belo Monte “é energia limpa e sustentável”. Há uma perversão no uso das palavras. Para muitos, as hidrelétricas na Amazônia ainda são “energia limpa e sustentável”. Para estes, as vidas que o processo engole não contam. Nunca contaram. É sempre fácil pedir o sacrifício dos outros.
    

     Assaltados na terceira casa, Otávio das Chagas e sua família vivem agora trancados e com medo
Na terceira casa, Otávio das Chagas, Maria e seus filhos quase perderam a vida. Os sentidos do viver, o reconhecimento de um saber sobre a floresta, a valorização de um conhecimento do rio, a possibilidade de sobreviver pelas próprias mãos já tinham sido destruídos pela violência do processo de Belo Monte. Mas, em 2 de julho, eles se sentavam à porta da casa, um hábito da ilha que ainda mantinham, quando homens armados a invadiram.
 

     Otávio conta: “Era seis hora da tarde. Porque nós moremo toda vida assim no mato e é a morada que eu me acostumo. Eu não me acostumo com a morada num lugar desse. Aí, quando é seis hora da tarde nós senta ali na frente da casa na morada no mato. Não tem perigo nenhum. Mas aqui, num lugar desse...”. Botaram um revólver na cabeça de Edilardo, o filho de 24 anos. Marisa, de 10, correu e foi pega por outro. O assaltante colocou um facão nas costas da menina. Naquele dia, Marisa estava doente, com febre. E de repente tinha também um facão ameaçando cortá-la.


A terceira não-casa: Otávio das Chagas, Maria e os filhos menores na casa doada por uma família austríaca que se comoveu com a história do pescador sem rio e sem letras, em julho de 2016

      Havia pouco para roubar na casa quase nua. Levaram celulares muito simples e um “devedezinho” que Otávio tinha comprado a prestações no Armazém Paraíba, no período em que os filhos mais velhos tiveram um emprego temporário. Era a única diversão das crianças na cidade, que nele assistiam a filmes piratas. Marisa tinha um da Barbie, Adriano, das Tartarugas Ninjas e do Menino Lobo. Levaram também o pagamento do mês de trabalho de Maria como doméstica na casa de outra mulher.
 

     Maria lava e limpa dia após dia para ganhar 400 reais no final do mês. É a primeira vez em 62 anos de vida que ela trabalha na casa de uma outra. Não é simples para Maria, uma mulher do rio, que costumava passar os dias cuidando da própria casa expandida. Mas é o salário de Maria que tem botado na mesa a pouca comida que os mantém vivos. Os assaltantes levaram tudo. Quando encontrei a família, alguns dias depois, Maria tinha conseguido com a patroa um adiantamento de apenas 10 reais. Seguidas vezes ela faz a limpeza toda sem ter comido nada desde o dia anterior.

     Aos 63 anos de vida ribeirinha, Otávio das Chagas não compreende a lógica da violência urbana a qual é agora submetido: “É porque eu sou uma pessoa que, graças a Deus, sempre fiz meus negócio direito. Eu não ando mexendo com ninguém. Eu achei que o cara não tinha coragem de entrar dentro de uma casa minha pra fazer uma coisa dessa. Eu não dou atenção pra certas coisa. Se uma pessoa chega na minha porta, e eu não conheço ela nem nada, eu trato ela bem. Eu ouvia falar, assim, mas eu mesmo não conhecia essas coisa, não. No mato eu ando só em qualquer lugar”. E Maria acrescenta: “A gente só via essas coisa na televisão”. E Otávio retoma: “Toda vida eu falo isso e todos que conhecem nós pode dizer: o que nós não temo coragem de fazer é pegar as coisa de ninguém. Graças a Deus que para isso todo mundo tem confiança em nós. Por que é que eu não tinha medo de ser assaltado? Porque eu não pego nada de ninguém. Eu pensei que faziam o mesmo comigo. Mas não é desse jeito”.


     Depois de ter sido arrancado da sua ilha, Edilardo foi contratado para fazer o mesmo com macacos e preguiças. De vítima virou algoz.Edilardo, que passou o assalto com um revólver na cabeça, tem pesadelos recorrentes em que a arma é disparada pelo assaltante e ele morre. Parece ter menos do que os seus 24 anos no corpo, parece ter mais na tristeza dos olhos. “Aqui na rua eu não me sinto muita coisa, não”, diz. “Sem estudo eu sou pouco.” O último emprego que teve o lançou numa fronteira cruel. Para conseguir trabalhar, Edilardo cravou na alma os arames farpados da contradição. Assim como os irmãos, ele foi contratado por uma terceirizada da Norte Energia para fazer a “remoção” dos animais nas ilhas. No dia em que teve que expulsar os bichos da Ilha de Maria, a sua, ele chorou. Edilardo havia sido convertido de expulso em expulsador. De vítima em algoz. Na perversidade pragmática do trabalho, a vida violada viola. E os olhos de Edilardo ganharam uma dor nova:

“Tudo o que nós tinha feito a água tinha acabado. Planta acabou tudo. Tudo queimado. Nós passava lá e via tudo destruído. Era muito muito muito. É muito triste ver uma coisa daquela acabada assim. No primeiro dia que nós fomos pra lá não vou mentir. Chorei mesmo. Chorei de verdade. Comecemo a pegar bichinho de lá, e os macaco começaram a gritar demais. Não vou mentir, teve uns que morreu. Morreu porque ia pegar e caía na água. Cortava a árvore de motosserra, com eles nos galho, tinha muito que morria afogado. Os paus caía tudo em cima, afogava. Teve deles que a gente salvava, tinha muitos que morria. Era muita judiação. Preguiça também, muitas morria. Paca, queixada, cotia... Tinha bicho que tentava atravessar a nado, mas tava fraco, tava com fome. Não conseguia. Pra pegar, não vou mentir, a gente quase enforcava eles, porque com fome e medo, eles mordia. Se não pegasse assim, nós não conseguia botar na caixa de madeira pra entregar pros biólogo. Eles soltava os bicho lá do outro lado, mas acho que lá, fraco do jeito que tava, os bicho morria também. Chorei no primeiro dia. Eu ainda não tinha visto como tinha ficado. Depois que vi, chorei. Ver um negócio daquele jeito e saber que não volta mais de jeito nenhum fica muito difícil”.
Maria interrompe: “Nós passa lá na nossa ilha e só tem uns pedaço de pau no meio da água. Dá vontade de abraçar um pedaço de pau e ficar agarrada ali a vida toda”.

     Edilardo conclui: “O que aconteceu com nós é tipo o mundo ter acabado. Assim, ter virado a página”. Tão logo eu parto, no final da tarde, eles fecham a casa que não é casa. Trancam-se num calor que ultrapassa os 30 graus à noite. Logo depois, dois homens batem. Pedem um cigarro. Eles não fumam. Pedem água. Eles não dão. Dentro de casa, eles temem ser alvejados. “Do jeito que nós é unido, se mata um acaba a família”, diz Edilardo. A casa é cada vez menos casa, cada vez mais toca. Assim como os bichos eram acuados para a única parte da ilha ainda não devastada, com fome e com medo, para que se tornasse mais fácil capturá-los, também eles estão ali. Encurralados, só que “na rua”. Jogados num outro canto, onde fracos e com fome também não conseguem viver, assaltados pelos mais fortes e mais bem adaptados ao cotidiano de violência e precariedades de uma cidade em que o esgoto escorre a céu aberto.


Encurralado: Edilardo foi feito refém em um assalto à casa, revólver na cabeça, e agora tem pesadelos recorrentes de que é assassinado

      Otávio das Chagas olha para as mãos e se envergonha: “Estão ficando fininhas”. No mundo que ele conhece e que o reconhece, homem de mãos finas é homem que não trabalha. Otávio se envergonha mais. Ele sofre porque “na rua” ninguém precisa do que ele sabe fazer, ninguém quer saber o que ele sabe. Está doente. Me mostra dois exames em que os indicadores revelam uma próstata bem alterada, mas não consegue médico para interpretá-los. Quando a dor é muita, ele compra uma caixa de 10 comprimidos de Finasterida, “pra ir passando”.
 

     Quase todo dia ele caminha com suas dores e com sua fome por quase uma hora, debaixo do sol amazônico, para visitar Antonia Melo na organização Xingu Vivo Para Sempre. Antonia é a maior liderança popular da região. Para Otávio, ela é o único ponto de referência em território desconhecido e hostil. Antonia perdeu sua própria casa, destruída por Belo Monte numa sequência de cenas que lembram um terremoto. Mas, para Otávio das Chagas, Antonia é uma casa. Ele vai lá para ser visto, para saber que existe. Otávio se reconhece nos olhos de Antonia e então empreende o caminho de volta. Sempre que se afasta dela, parece ficar mais longe de si mesmo. Empreende sua viagem sem retorno com suas dores e com sua fome, mas um pouco menos partido.Quem pode dizer quem é aquele que é?
      Otávio das Chagas tentou, mas, como tem acontecido com tantos, não foi reconhecido como ribeirinho. Nem com direito a ser reassentado junto ao reservatório da usina. É a Norte Energia quem diz quem ele é, quem tantos são. Não a vida, não a história, não a memória, não o conhecimento produzido sobre o tema nas melhores universidades do Brasil. Mas o empreendedor. Mas quem pode dizer quem é aquele que é?
 

     Otávio, o homem que parece encolher, resiste. Anuncia que voltará para o rio de qualquer modo porque viver é preciso. E ele só sabe viver se navegar. Nas águas do Xingu. “Eu não sei andar de carro, eu não sei andar de moto, eu não sei andar de bicicleta, não vou lhe mentir. Mas de canoa eu sou profissional, todo mundo me conhece como profissional do rio”. Como a ilha morreu afogada, Otávio promete se plantar numa beira do rio e ficar. Desta vez, usará as unhas para fincar na terra se for preciso. “Aqui, tudo é de acordo pra ir pro mato mais eu de novo”.
Otávio das Chagas está vivo porque ainda não desistiu de encontrar o caminho de casa.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

Acessar texto originalmente publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/18/opinion/1468850872_994522.html

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Sobre ser superior e suprimir a própria humanidade

 

   Não é de hoje que espera-se da mulher o recato, a delicadeza e uma fragilidade para muitos charmosa e envolvente. Somos educadas a não chamar palavrão, a falar pouco, a estudar e só namorar mais tarde, a usar roupas comportadas, a falar pouco, a rir baixo, a ser discreta, ser delicada e mansa, a ser bela, ser magra e comer pouco. Se possível, ser do lar também, porque ninguém é de ferro. O que fazemos com a realidade de que somos humanas, demasiadamente humanas? Deparamo-nos então com realidades próprias e de amigas, dando conta que até homens aparentemente diferenciados, mais progressistas e inteligentes, admiradores de mulheres avançadas e independentes, não sustentam a atração e sucumbem à convivência com mulheres que colocam-se no oposto da servidão ou da mansidão. Ao ler o Think Olga por estes dias, deparei-me com esse texto da Luíse Bello. É muito bom ver outras pessoas esforçando-se para tentar refletir sobre nossa natureza humana, intrinsecamente complexa. Desde a gênese somos assim: sem pólos, binarismos ou extremos. Como tal, podemos sucumbir e sofrer, errar e acertar, exagerar e faltar, e isso é a vida. Não podemos nos descaracterizar em nome de uma máscara social, sustentada por dores às vezes demasiado profundas. Nada vale suprimir nossa humanidade. Então o lance é o seguinte: vamos gritar, desabafar, chorar e deprimir o tempo que for necessário.  Faz bem.

 

Leiamos:

 

Não seja superior: seja você mesma


   A atriz Amber Heard está sendo elogiada e celebrada por doar à caridade os US$ 7 milhões que receberá no seu acordo de divórcio com o ator Johnny Depp. É como se essa atitude fosse um “tapa com luva de pelica” na cara de todo mundo que a chamou de oportunista quando ela o acusou de violência doméstica e pediu a separação. Nessa história, Amber está “saindo por cima”. Mas será que está mesmo?

   A famosa página Humans of New York, que traz retratos de pessoas comuns contando um pouco de suas histórias na cidade, recentemente publicou o caso de uma senhora que, após traída em um longo casamento com filhos e ver seu ex-marido casar-se com a amante, passou por cima de sua própria mágoa para manter um bom relacionamento com o pai das crianças, chegando até a participar de festas em seu novo lar. Nos comentários, milhares elogiando sua capacidade de ser uma “super mãe” que faz “tudo pelas crianças”. Mas o que é “tudo”?

   A escritora renomada J.K. Rowling defendeu o nadador Tom Daley após ele ter sido vítima de trolls homofóbicos no Twitter. Como é de praxe, conselhos do tipo “não alimente os trolls”, “é isso o que eles querem”, “não adianta discutir” começaram a pipocar, porque é isso o que esperam de quem sofre esse tipo de ataque: que se calem, que sejam superiores, que não percam o seu tempo com quem não vale a pena. Mas, no final, quem está pagando essa pena?

   Qual é a definição de ser superior quando uma mulher vive uma experiência negativa, senão ignorá-la e fazer boas ações mesmo com seu coração cheio de mágoas? Porque devemos almejar sempre sermos vistas como santas, como pessoas tão superiores que jamais se afligem com as provações terrenas, quando isso, na prática, significa um sofrimento calado, uma raiva engolida? Isso tudo nos faz mal, nos adoece, mas quantas vezes achamos isso melhor do que “descer o nível” e sermos vistas como, imaginem vocês, humanas?

   Para as mulheres negras essa situação se agrava por causa do estereótipo de “barraqueiras”, como se agressividade fosse algo esperado delas. Afinal, a ideia de uma mulher agressivamente lutando por algum direito seu, nem que seja por respeito ou dignidade, não é muito feminina. Esse tipo de atitude aborrece uma sociedade que nos quer ver sempre mudas e coniventes com nosso próprio sofrimento. Quando algo nos prejudica, SEMPRE há consequências emocionais: o que é esperado de nós, porém, é que internalizemos a dor para não causar distúrbios no privilégio masculino. Ser superior é fazer com a raiva sentida por uma mulher silenciosamente imploda dentro dela e não exploda em praça pública.

   Mas estamos em guerra contra o machismo e vai haver explosões no caminho. Nossa raiva tem uma razão de ser. E, se aprendemos que a atitude certa ao sermos atacadas é ignorar, deixar pra lá, somos também impedidas de exercer nossa liberdade de expressão. “Obrigar a pessoa ofendida a ser superior é pedir que engulam uma traição, ofereçam perdão automaticamente e, dessa forma, tomar para si ainda mais dor. É por isso que ser superior é um saco. E, muito frequentemente, sexista”, escreveu Elaine Lui em um artigo brilhante sobre o assunto (em inglês, leia aqui: http://www.flare.com/culture/lainey-flare-eff-forgiveness).

   Afinal, quando ofendidos, os homens são até celebrados ao reagir. Um exemplo recente é o jogador Neymar que, após a vitória do futebol masculino na final Olímpica, podia dar qualquer declaração positiva sobre o significado desse momento, mas decidiu levar para o pessoal e dizer: “Vocês vão ter que me engolir”, em infeliz referência ao ex-técnico Zagallo que proferiu a mesma frase após também ter sido momentaneamente desacreditado. Na internet, a reação foi de muita compreensão ao Neymar e sabemos que o comportamento explosivo de Zagallo sempre foi visto como parte de sua personalidade sem que isso interferisse na sua capacidade profissional.

   Aliás, homens do entretenimento constroem carreiras inteiras em cima da fama de zangados, vide apresentadores de programas policialescos, que se exaltam e até mesmo gritam diante das câmeras, e figuras controversas como o rapper Chris Brown que, mesmo após um episódio seríssimo e comprovado de violência doméstica, continua com sua carreira praticamente intacta. A raiva masculina é perdoada e a das mulheres deve se converter em perdão. Ainda que de maneira pacífica, uma mulher que resolve falar sobre suas mágoas é vista como fraca, sentimentalóide, alguém que não superou algo que já devia ter sido esquecido. É só lembrar que Taylor Swift, mesmo sendo branca e muito privilegiada, tem uma fama negativa por escrever músicas sobre relacionamentos passados – como se diversos cantores já não tivessem feito exatamente a mesma coisa (Olá, Adam Levine e o álbum Songs About Jane).

   Vamos combinar uma coisa? Na próxima vez em que formos magoadas, feridas, traídas e prejudicadas, vamos “ser superiores” somente se for a nossa vontade, se isso não nos matar por dentro, se nos trouxer paz e segurança. Caso contrário, vamos respeitar nossos sentimentos e exigir que os outros façam o mesmo. Diferente do que muita gente nos fez acreditar a vida inteira, isso não é pedir demais. É apenas o que é justo.#RaivaComRazão


Ler texto original no link: http://thinkolga.com/2016/08/26/nao-seja-superior-seja-voce-mesma/

Amor entre cachorro e dono é o mesmo que entre mãe e filho, segundo pesquisa japonesa

            Você tem um animal de estimação? Já olhou profundamente nos olhinhos dele e sentiu-se derretido? Teve a impressão de que er...